Equidade na Lei 9.099/95: rápida visão teórica e jurisprudencial

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*em homenagem aos juristas Cássio Benvenutti de Castro, magistrado no Rio Grande do Sul, e Morinobu Hijo, professor aposentado da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP).
Em substancioso texto datado de 1978, integrante do Projeto Florença de Acesso à Justiça, Mauro Cappelletti e Bryant G. Garth salientaram que a maior barreira ao julgamento das causas de pequeno valor (small claims) era o custo para mantê-las [1]. Após identificar esse entrave ao acesso à justiça, os mencionados autores, com fundamento no direito comparado, propuseram a implantação de órgãos jurisdicionais competentes para o tratamento e à resolução de tais demandas: os tribunais de pequenas causas (small claims courts). Para conferir maior potencial de efetividade a esses tribunais, seria viável a adoção das características presentes nos melhores sistemas de arbitragem: rapidez, certo grau de informalidade, juízo dotado de postura mais ativa diante do litígio e a possibilidade de litigância efetiva sem a presença de advogados [2].
Mesmo antes de 1988, o Brasil já havia acolhido a sugestão de Cappelletti e Garth ao instituir o Juizado Especial das Pequenas Causas, regido pela Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984. Por meio de texto enxuto — com apenas 59 artigos — a mencionada Lei tinha por objetivo facilitar o acesso ao Poder Judiciário, isentando o usuário do JEPC do pagamento de custas em primeiro grau de jurisdição (artigo 51) e enfatizando a oralidade e celeridade para propiciar ao jurisdicionado um processo rápido, seguro e adequado[3].
A partir da experiência bem sucedida dos JEPCs, a Constituição de 1988 resolveu ampliar o espectro desses juízos ao atribuir à União e aos estados membros da federação a competência para a criação de juizados especiais competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade, além de infrações penais de menor potencial ofensivo (artigo 98, I). No entanto, apenas em 1995 veio à balha a Lei 9.099, responsável por expressamente revogar a Lei 7.244/84 (artigo 97), e por conferir plena efetividade aos juizados: os então noveis Juizados Especiais Cíveis deixariam de ser meros juízos de conhecimento. Diferentemente do modelo declaratório/condenatório de direitos dos Juizados Especiais das Pequenas Causas, o procedimento cível da Lei 9.099/95 outorgou competência aos próprios juizados para a execução das respectivas sentenças (artigos 1º, 52 e 53).
Como legado de um sistema jurisdicional eficiente, adequado, útil e funcional [4], o artigo 6º da Lei 9.099/95 repetiu a literalidade do artigo 5º da Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984, ao dispor que “[o] Juiz adotará em cada caso a decisão que reputar mais justa e equânime, atendendo aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum”. Juntamente com a maior liberdade concedida ao juízo para a determinação das provas aptas à elucidação das versões dos fatos [5] alegadas pelas partes litigantes (Lei 9.099/95, artigo 5º), a pessoa do magistrado está autorizada — pelo menos conforme a semântica do referido artigo 6º —, a proferir sentenças em casos cíveis com base na equidade.
O artigo 6º, da Lei 9.099/95, parece ter mais amplitude do que a previsão do artigo 5º, da Lindb: esse último dispositivo determina que o juiz deve atender ao bem comum e aos fins sociais da lei a ser aplicada ao caso dos autos. Por outro lado, em redação imperativa (“adotará”) o mencionado artigo 6º acresce aos fins sociais da lei e às exigências do bem comum a decisão que o juiz considerar mais justa e equânime. Roberto Sampaio Contreiras de Almeida [6] lembra que o artigo 6º, da Lei 9.099/95, é uma exceção à legalidade estrita, cuja previsão está no parágrafo único do artigo 140 do CPC. No entanto, a “justiça e a igualdade” do JEC não significam julgamento em conformidade com os “sentimentos pessoais de justiça” do magistrado, uma vez que ele deve atender aos fins sociais e exigências do bem comum estabelecidos pela lei.
Em obra essencial aos que pretendem compreender em profundidade e bem lidar com os Juizados Especiais, Cássio Benvenutti de Castro [7] faz uma arguta e sutil diferenciação entre as decisões “por equidade” e “com equidade”: as decisões “por equidade”, possíveis em conformidade com o parágrafo único do artigo 140 do CPC, são aquelas lastreadas na capacidade de o juiz ser benevolente e compreensivo, mas sem se afastar “da preservação do patrimônio jurídico da contraparte”. Por outro lado, as decisões “com equidade” não dependem de previsão legal, pois visualizam o caso concreto à luz do “todo social, ponderando os fatores temporais e locais”, o que resulta em “solução das questões de maneira razoável”. Ao final, o autor entende que os Juizados Especiais preveem julgamentos “com equidade” [8].
O exame da jurisprudência das turmas recursais de alguns estados da Federação mostra que os julgamentos proferidos com fundamento na equidade se aproximam da ideia defendida por Cássio Benvenutti de Castro, isto é, a de que o artigo 6º, da Lei 9.099/95, se refere ao julgamento “com equidade”, ou com base na razoabilidade. Em São Paulo, o mencionado dispositivo legal foi invocado para 1) arbitrar lucros cessantes em favor de caminhoneiro que não pode trabalhar porque se envolveu em acidente de veículo [9]; 2) fundamentar o valor da indenização por danos morais [10]; e 3) justificar a devolução de metade da quantia utilizada para pagar mensalidades de curso ministrado de forma parcial e online em decorrência da pandemia e da mudança de domicílio do aluno durante as aulas [11]. No Ceará, há julgado em que a equidade foi invocada para fundamentar a redução da condenação em danos morais de acordo com as “peculiaridades do caso concreto”. Tratava-se de empréstimo consignado envolvendo pessoa analfabeta [12].
O Rio Grande do Sul já se valeu da equidade para fixar honorários advocatícios [13] e, também, para fixar a indenização em favor de consumidor domiciliado na zona rural que sofreu interrupção de energia elétrica por mais de 8 horas, sofrendo perda da produção de leite e de carne bovina [14]. No Acre, fundamentou-se na equidade a redução da indenização derivada da resilição unilateral de promessa de compra e venda [15]. E no Rio de Janeiro, a equidade serviu para afastar danos morais em ação movida contra concessionária de energia elétrica para questionar a validade de Termo de Ocorrência de Irregularidade (TOI), dado que a autora já havia se beneficiado do “grande período em que houve consumo com grandes oscilações” [16].
O artigo 6º, da Lei 9.099/95, prevê os julgamentos “com equidade”, significando que o magistrado deve voltar as atenções aos pormenores do caso dos autos e ao contexto em que as partes litigantes estão inseridas [17]. Somente dessa forma o órgão judicante conseguirá cumprir a finalidade social da lei e o bem comum. Para tanto, avulta em importância a qualidade da fundamentação do julgado, que prevenirá a ocorrência de arbítrio judicial e viabilizará o controle recursal eficaz das razões de decidir.
[1] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant G. Access to justice: the newest wave in the worldwide movement to make rights effective. Buffalo Law Review. 1978: vol. 27, p. 188-189.
[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant G. Access to justice: the newest wave in the worldwide movement to make rights effective, p. 244.
[3] HIJO, Morinobu. O processo e o juizado especial das pequenas causas. Revista da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, v. 2, 1992, p. 56.
[4] HIJO, Morinobu. O processo e o juizado especial das pequenas causas, p. 58.
[5] De acordo com Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, o objeto da prova é a afirmação de um direito, e não o direito. (Prova e convicção. 5ª ed. São Paulo: RT, 2019, p. 113-114)
[6] Breves comentários ao novo código de processo civil (Coords. Teresa Arruda Alvim, Fredie Didier Jr., Eduardo Talamini e Bruno Dantas). São Paulo: RT, 2015, p. 460.
[7] CASTRO, Cássio Benvenutti de. Juizados especiais cíveis dos estados: Lei 9.099/95 conjugada com a Lei 12.153/2009. Londrina: Thoth, 2022, p. 120-121.
[8] Fernando da Fonseca Gajardoni também distingue os julgamentos “por equidade” daqueles “com equidade”. Todavia, esse autor entende que são os julgamentos “por equidade” que admitem o afastamento dos critérios de legalidade estrita e a adoção da discricionariedade judicial. (Comentários ao novo código de processo civil. Coords. Antonio do Passo Cabral e Ronaldo Cramer. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 264.
[9] Recurso inominado cível nº 1005497-26.2020.8.26.0309.
[10] Recurso inominado cível nº 1004715-88.2021.8.26.0016.
[11] Recurso inominado cível nº 0008438-93.2021.8.26.0223.
[12] Recurso inominado cível nº 0008744-56.2015.8.06.0182.
[13] Embargos de declaração nº 71010521938.
[14] Recurso cível nº 71010504314.
[15] Recurso inominado nº 0007983-11.2015.8.01.0070.
[16] Recurso nº 0800007-76.2022.8.19.0003. O acórdão confirmou a sentença, pois a parte recorrente não cumpriu a regra da dialeticidade recursal.
[17] No direito comparado, Michele Taruffo se refere ao particularism, que é uma “orientação segundo a qual as decisões vertem sempre sobre situações específicas, concernem a pessoas particulares e são justificadas fazendo-se referência às circunstâncias do caso concreto”. (Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 230)
Por Luiz Roberto Hijo Sampietro, doutorando e mestre em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito (EPD), bacharel em Direito pela Universidade São Judas Tadeu (USJT), advogado e professor de Processo Civil em cursos de pós-graduação lato sensu.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 14 de outubro de 2022, 21h36
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14 de outubro de 2022 |

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