Mediação comunitária como meio de efetivação da democracia participativa

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Resumo: Malgrado a Constituição Federal de 1998 tenha garantido o exercício da democracia participativa, este ainda é um dos desafios enfrentados pela sociedade brasileira. Nota-se, então, a necessidade de modalidades alternativas de implementação da cidadania ativa no seio comunitário e, como consectário lógico, para o exercício da democracia participativa, dentre outras iniciativas, merece ênfase a mediação de conflitos. O presente trabalho visa, pois, evidenciar como a mediação comunitária pode auxiliar na efetivação da democracia participativa. Para tanto, utilizou-se de pesquisa documental, assim como de espécie bibliográfica transversal de caráter qualitativo. Inicialmente, discorreu-se sobre os conceitos de democracia participativa e mediação comunitária. Em seguida, analisou-se o conjunto de interconexões entre democracia participativa e mediação comunitária. Posteriormente, pontuou-se sobre alguns dos projetos de mediação em curso no Brasil. Como resultado, demonstrou-se que a mediação pode colaborar para uma mentalidade democrática e como instrumento de inclusão social, contribuindo para a consecução da cidadania plena.
Palavras-chaves: Comunidade; Democracia Participativa; Mediação.
Abstract: Despite the Federal Constitution of 1998 has guaranteed the exercise of participatory democracy, this is still one of the challenges faced by Brazilian society.Note, then, the need for alternative modalities of implementation of active citizenship within the Community and, as consectário logical, for the exercise of participatory democracy, among other initiatives, deserves emphasis on conflict mediation. The present work aims therefore to show how community mediation can assist in the realization of participatory democracy. We used to document research, as well as cross-species literature of qualitative character. Initially, spoke out about the concepts of participatory democracy and community mediation. Next, we analyzed the set of interconnections between participatory democracy and community mediation. Later, she pointed out to some of the projects on mediation underway in Brazil. As a result, it was shown that mediation can contribute to a democratic mentality and as a tool for social inclusion, contributing to the achievement of full citizenship.
Keywords: Community; Participatory Democracy; Mediation.
Sumário: 1. Democracia e Comunidade. 2. Mediação Comunitária: instrumento de cidadania e inclusão social. 3. Mediação comunitária como meio de efetivação da democracia participativa. 4. Experiências de Mediação Comunitária.
1 Democracia e Comunidade
Democracia e comunidade são elementos que caminham lado a lado, pois a idéia de comunidade implica necessariamente no conceito de Democracia.
Segundo a Teoria Política de John Dewey, uma das teorias democráticas mais avançadas, a democracia não é uma alternativa a outros princípios de vida associativa, mas é a própria idéia de comunidade, esta levada até o seu último limite; completa e perfeita. Em suas próprias palavras: “A pura consciência de uma vida comunal, com todas as suas implicações, constitui a idéia de democracia” (1927 apud POGREBINSCHI, 2004, p. 46).
Para Dewey, democracia passa a ser possível quando tem como ponto de partida o fato da comunidade, com todos os seus elementos constitutivos; assim a democracia encontra-se mais no meio social que no político, sendo que a forma política da democracia só pode acontecer quando o público descobrir-se e isso se dará por meio do social (idem).
Então, dentro do pensamente deweyano:
“A democracia, portanto, é a solidificação das possibilidades inerentes à vida comunitária, social; é um todo único onde se incluem as potencialidades e as capacidades dos indivíduos que são desenvolvidos por meio de atividades operativas levadas a cabo pela comunidade. (…) é uma forma de vida comunal que oferece oportunidades intermináveis para o desenvolvimento da individualidade em sua plenitude. (…) Os indivíduos membros das comunidades, portanto, devem participar da formação dos valores individuais e sociais que regulam sua vida comum. (…) a idéia de democracia engloba essa noção de auto-realização, ou seja, de constituição e consolidação recíprocas da individualidade e da coletividade uma por meio da outra” (1927 apud POGREBINSCHI, 2004, p. 46 e 47).
Já na obra de Hegel (Filosofia do Direito), o Estado é uma “Commutis communitatum” e não uma agregação de indivíduos pelo contrato. Sua visão de comunidade é concêntrica formada por círculos interligados, dentro os quais se encontram as comunidades locais, cada uma delas consideradas como lugar de afirmação do indivíduo e de todos eles em conjunto, estabelecendo-se como elemento formativo do Estado.
Outra conceituação interessante para comunidade é colocada por Marx , quando ele aduz que ela é um modo de vida no qual todos são chamados pelo nome, querendo, assim, afirmar que a comunidade é uma vivência em sociedade onde a pessoa mantém sua identidade e singularidade e pode participar dar sua opinião, manifestar seu pensamento e, assim, ser alguém (apud GUARESCHI, 2009, p. 95)
Vivendo em comunidade as pessoas
“têm voz e vez podem colocar em ação suas iniciativas, desenvolvem sua criatividade, mas seu ser não se esgota nelas mesmas : elas se completam na medida em que se tornam um ‘ser para’, exercitando sua plena vocação de animal político, social” (GUARESCHI, 2009, p. 96).
Aqui se encontra o elo entre a comunidade e a democracia, porquanto somente há democracia quando existem verdadeiras comunidades onde as pessoas são identificadas e podem participar.
E neste pensamento afirma Pedrinho Guareschi, que um país somente será democrático
“Se houver, em sua base, uma rede de comunidades, onde os cidadãos exercitam seus direitos de participação e são respeitados como pessoas. É nesse nível básico que acontece a vida e a vivência democrática. Se não houver democracia em nível comunidade, não poderá haver democracia em nenhum outro nível (…). O teste de uma sociedade democrática é a existência de verdadeiras comunidades” (2009, p. 97 e 98).
Compreende-se que há a necessidade de participação para a constituição da comunidade e a total indissolubilidade entre participação e democracia e entre esta e a comunidade, pois que a participação social integra o cotidiano de toda a pessoa humana, que se associa com vistas a alcançar objetivos que dificilmente seriam atingidos caso fossem perseguidos individual e isoladamente.
A consolidação de uma vivência democrática transparente requer uma gestão que se fundamente na inclusão da comunidade em geral, garantindo igualdade de participação e possibilitando a expressão de idéias no momento das decisões coletivas.
Realiza-se, deste modo, uma real democracia participativa, que se expressa justamente através da participação do indivíduo na vida da comunidade, porquanto a democracia é um “modo de vida” ordenado nas possibilidades de os indivíduos terem discernimento, atitude e sabedoria diante das relações sociais cotidianas.
2 Mediação Comunitária: instrumento de cidadania e inclusão social
Uma sociedade democrática caracteriza-se pela existência de cidadãos capazes de solucionar com habilidade os problemas sociais. Sendo tal capacidade desenvolvida através da educação e por meio da prática cotidiana da participação livre e experiente da cidadania.
Participação e cidadania são conceitos interligados e referem-se à apropriação pelos indivíduos do direito de construção democrática do seu próprio destino. Uma é, portanto, acesso à outra, porque a cidadania só se consolida na presença de uma participação social entendida enquanto ação coletiva e o seu exercício consciente, voluntário e conquistado.
Cidadania é deste modo, o indivíduo comprometido com a vida da sociedade e envolve aqueles direitos humanos de mobilização e participação nas conquistas individuais, mas, sobretudo, coletivas.
Porquanto ser cidadão não é apenas estar inserido dentro de uma sociedade, mas sim ser parte da espécie humana. Partindo deste entendimento, percebe-se que o exercício da cidadania é comum a toda e qualquer pessoa, independentemente de sua cultura ou camada social. Sendo, assim, necessária a geração de soluções aos problemas das desigualdades sociais, em busca da verdadeira cidadania universal.
E, num Estado Democrático de Direito que se fundamenta na soberania, na cidadania e na dignidade da pessoa humana, poder-se-á dizer que o respeito ao ser humano se consolida no exercício da cidadania. Mesmo porque, somente uma sociedade democrática oportuniza a existência da cidadania.
Democracia é, de fato, exercício real da cidadania. E, segundo Sandra Moreira, efetiva-se quando os direitos fundamentais são concretizados, “o que somente irá ocorrer coma transformação da consciência de seus indivíduos, como sujeitos de um novo processo de integração social”( 2003, p.210).
Por seu turno, a consolidação de uma vivência democrática transparente, requer uma gestão que se fundamente na inclusão da comunidade em geral, garantindo igualdade de participação, possibilitando a expressão de idéias que possam ser discutidas no momento das discussões coletivas. Para tanto, é necessário o exercício da comunicação, pois quando os indivíduos passam a ter plena oportunidade de interagir, discutir e deliberar a respeito dos problemas efetivos que a comunidade real apresenta todos os dias desenvolve-se a sua capacidade de lidar com os estes mesmos problemas. Como aduz Dewey:
“Pois que é a fé na democracia nos papéis de consulta, de conferência de persuasão, de discussão (…), senão a fé na capacidade da inteligência do homem comum para responder com bom senso ao livre jogo de fatos e idéias que são assegurados pelas garantias da livre investigação, da livre reunião e da livre comunicação?” (1927 apud THAMY POGREBINSCHI, 2004, p. 51)
De logo, cabe a ponderação de Pogrebinschi:
“No contexto de um processo tão livre, e tão intrinsecamente auto-corretivo de intercomunicação, é inevitável que surjam conflitos entre os indivíduos, dado que cada um tem sua maneira de enxergar necessidades, fins e conseqüências. A solução para tais conflitos é a “cooperação amigável”. (…) Em outras palavras as controvérsias devem ser transformadas em empreendimentos cooperativos em que as duas partes aprendem possibilidades, uma à outra, a chance de expressar-se (idem.)”
A gestão democrática e participativa exige, então, o olhar de cada espaço como um elo mediador interpelando aos cidadãos à participação e ao envolvimento nesse processo, rompendo com uma visão paternalista e redentora que tem permeado muitas comunidades.
Acostando-se a esta premissa, percebe-se que a mediação, por ser meio de interação intercomunicativo, pode colaborar com a realização da democracia em sua forma mais ideal.
Na medida em que a mediação de conflitos gera uma maior responsabilidade e participação da comunidade na solução de suas lides, o que colabora positivamente para a preservação das relações e colabora para a construção de cidadãos conscientes do seu poder de solucionar os seus problemas através do diálogo produtivo, construindo relações cooperativas entre as pessoas da comunidade, conduzindo para uma positiva transformação sócio-cultural. (MEDIARE. Mediação de Conflitos: Exercício de Cidadania e de Prevenção. Disponível em: <<http:// www.mediare.com.br>>. Acesso em: 18 mar.2010).
Neste contexto a mediação conduz a um determinado grau de democratização, equivalente à realização de cidadania plena alcançada por quem dela participa, ao passo em que gere cidadãos ativos que compartilham efetivamente da vida social de sua comunidade.
Vendo-se assim, pode-se afirmar que a mediação comunitária é um importante instrumento para concretização da democracia substancial, fruto desta aplicação da democracia formal, através da participação ativa do indivíduo na resolução dos seus próprios embates (SALES, 2005, p.243).
É um meio eficaz para implementação da democracia participativa, uma vez que as próprias partes são responsáveis pela resolução dos conflitos, Nesta esteira, como bem explica Sales:
“o mediador constrói uma visão positiva do conflito em análise e demonstra às partes (…) que elas mesmas têm capacidade de encontrar suas soluções. Esta cultura não adversarial e reflexiva valoriza o potencial de cada parte (…). Este sentimento positivo que a mediação produz equivale a uma ótima sensação de inclusão social.
[…] principalmente pelo papel conscientizador e educativo que incute no pensamento dos envolvidos.” (2005, p.62)
Desta forma, continuando com o entendimento de Sales:
“A mediação comunitária é democrática porque estimula a participação ativa das pessoas na solução de conflitos, permite o acesso à justiça (resolução de conflitos) por parte dos hipossuficientes e propicia a inclusão social quando deixa que por eles mesmos a solução de seus problemas” (2007, p. 63).
Assim, a mediação tem o condão de educar, ajudar a identificar as diferenças e promover a tomada de decisões sem a intervenção de terceiros, que decida o conflito pelo indivíduo, simbolizando, portanto, o instrumento de exercício da cidadania.
E, abarcando a cidadania como condição para a inclusão social, a mediação comunitária perfaz-se em uma iniciativa reinclusiva, por entregar o controle de suas vidas aos próprios cidadãos, humanizando as pessoas em relação às outras, ajudando a transcender seus preconceitos e paradigmas.
Nas palavras de Sandra Mara Vale Moreira:
“[…] por perseverar as relações sócio-afetivas, encarando o indivíduo como responsável por suas próprias ações e, como tal, capaz de solucionar seus problemas, atuando como sujeito de seu destino, desperta a mediação nos que a ela recorrem a consciência de seu papel de ator social. Preservando o respeito à dignidade do homem, a mediação, resgata em seus clientes o sentimento de cidadania que neles se encontra adormecido” (2003, p.212).
E, todo o desenvolvimento realmente humano se dá não somente através das capacidades individuais, mas também das participações comunitárias, porquanto é o que gerará o sentimento de pertencer a um grupo social, e este inserção no meio social e o que se pode chamar de inclusão social.
No entanto, alerta Juan E. Díaz Bordenave que
“É e um erro esperar que a participação traga necessariamente a paz e a ausência de conflitos. O que ele traz é uma maneira mais evoluída e civilizada de resolvê-los. A participação tem inimigos externos e internos: em nossa sociedade classista e hierárquica nem sempre se aceita o debate com inferiores na escala social ou de autoridade. Dentro do próprio grupo haverá pessoas que, mesmo admitindo que todos são iguais, consideram-se “mais iguais” que os demais” (1994, p.80).
Desta forma, as desigualdades – ou a percepção de desigualdade – podem vir a ser um empecilho à participação social, gerando uma pseudo-cidadania por afastar uma parcela da sociedade das decisões políticas.
Portanto, por valorizar a igualdade entre as pessoas, através de um procedimento que oferece a mesma oportunidade de se manifestar, visto que privilegia o ser humano independentemente de suas condições econômicas e sociais, acreditando que a pessoa humana possui em si a capacidade de dirimir seus conflitos por meio de soluções consensuais, pacíficas e criativas, a mediação de conflitos é instrumento favorável à integralização social.
É nos espaços de participação construídos através de uma mediação democrática que os envolvidos aprendem e vivenciam a cidadania. Rompendo o silêncio, abre-se à participação para além dos espaços privados da comunidade, contribuindo, assim, para o fortalecimento deste ambiente social e, secundariamente, na construção de todo estado.
Diz-se isto porque, dentre outros benefícios, leva a cabo aspectos fundamentais de um estado democrático de direito, tomados como princípios basilares de Carta Magna brasileira, quais sejam: a dignidade humana e a inclusão social.
3 Mediação comunitária como meio de efetivação da democracia participativa
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, estabelece como direitos e deveres individuais e coletivos a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade. Direitos basilares de um estado democrático, onde predomina a democracia participativa, já que a soberania, segundo as teorias democráticas, origina-se do próprio povo.
Elencam também, no art. 6º, aqueles que seriam os direitos sociais, quais sejam: a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, e a assistência aos desamparados.
Contudo, devido ao modo de colonização implementado no Brasil e, posteriormente, em decorrência das políticas sociais e econômicas aqui aplicadas, até os dias atuais, verifica-se uma grande desigualdade social, onde, de um lado, encontram-se pessoas de elevado nível econômico e, de outro, pessoas que sobrevivem em condições aquém do se possa considerar essenciais e dignas.
E embora a CF/88 apregoe tais princípios, e os tenham como base para todas as ações estatais, o próprio Estado, em seus projetos político-sociais, não promove a efetivação dos mesmos de maneira igualitária. Dessa forma, acabam surgindo agrupamentos sociais de pessoas com iguais necessidades, mas que não tem reconhecimento estatal.
Assim, estas comunidades são submetidas à alta vulnerabilidade social, conotação pública dos conflitos, posto que estes saiam às margens das relações interpessoais e, abrangem alto grau de complexidade quando congregados a falta de educação e inassistência do Poder Público.
Por isso, defende-se a necessidade de implementação da Mediação Comunitária como instrumento apto a promover tanto o diálogo como maior responsabilidade e participação da comunidade na solução dos seus conflitos, Por ser esse um procedimento baseado no tratamento das pessoas como seres humanos únicos, que devem esclarecer suas dificuldades em uma inter-relação social e, por sua própria iniciativa, alcançar um acordo pertinente à lide.
Observa-se, pois, que esta espécie de mediação reinsere nos indivíduos sua identidade de atores e partícipes da sociedade, uma vez que o caráter democrático da mediação oportuniza ao cidadão a reflexão e a decisão com o(s) outro(s) envolvido(s) sobre a questão em conflito. Nesse sentido, aduz Rafael Mendonça
“A Mediação de Conflitos apresenta um valor democrático intrínseco. (…) Não há nada mais democrático do que decidir por si. Novamente, essa emancipação democrática guarda fortes relações com cidadania da proposta transmoderna. Dessa forma a concepção transformadora do conflito existente na Mediação (…) é também uma forma de realização da democracia, da cidadania (…)” (2006, p.117).
Nesta efetiva participação do indivíduo na resolução dos problemas pessoais e sociais, concorre-se para a responsabilidade civil, passando o indivíduo a ser partícipe da sociedade, comprometido com o contexto em que vive, tomando-se parte dos interesses coletivos e capaz de monitorar do poder público. Faz-se despontar, assim, a idéia de participação, que vem a ser a participação direta e pessoal do cidadão na organização social, notadamente nos novos caminhos para uma positiva transformação sócio-cultural.
Como dito, a mediação comunitária visa atingir as comunidades em alta vulnerabilidade social, proporcionando que a própria comunidade atue na resolução de conflitos locais, adquirindo respeito, proporcionando um ambiente de conscientização e autonomia.
No entendimento de Jean Six,
“[…] primeira mediação a fazer é a de devolver confiança às cidades e aos subúrbios, estudando-se a fundo sua realidade e potencialidades(…) criar uma democracia urbana, pesquisar novas maneiras de os cidadãos tornarem-se cidadãos de fato, de responsabilizarem-se por sua cidade, por seu subúrbio, de criarem novos projetos para si.” (2001 apud MIRANDA, 2005, p. 17)
Desta maneira, para as pessoas que vivem em comunidades, a mediação comunitária pode ser meio eficaz de solução de disputas, perfazendo-se em um processo tipicamente democrático, na medida em que possibilita o acesso participativo à justiça (resolução de conflitos) por maior parte da população de baixa renda.
Ressalte-se que dentro dessas comunidades, desenvolvem-se conflitos que são peculiares e constantes, que normalmente não são alcançáveis pelas vias tradicionais de resolução de lides, seja pela carência de informação aos indivíduos, seja pela parca valia financeira do conflito, encontrando, pois, no ambiente da mediação social, um espaço para ser discutido – e quiçá – solucionado.
Na opinião de Malvina Muszkat, a mediação social nas comunidades de baixa renda possibilita a expansão de conhecimentos e capacidades de análise dos conflitos até então não praticados pelas partes, proporcionando o desenvolvimento da democratização, cidadania e o enfrentamento de questões que envolvem a exclusão social, desigual distribuição de poder e violação dos direitos humanos (2003 apud NORONHA, F., 2010).
Assim, a mediação social propicia a participação direta do cidadão das minorias excluídas, fazendo-se mais eficaz que as participações institucionalizadas, porquanto serem estas dependentes do tempo e da vontade política, bem como da evolução cultural e econômica das esferas sociais, findando por não alcançar a objetividade pretendida, qual seja, a participação efetiva de todo o povo nas decisões públicas.
Se para a democratização, segundo Robert Dahl, é preciso a inclusividade (participação do cidadão na vida política) e a contestação pública (direito de oposição), a mediação comunitária, por seu lastro, pode ser instrumento hábil para sua realização (MARTINS, 2003, p.58).
Ademais, há que ser considerado que a mediação comunitária reforça a democracia direta através da participação cidadã. Sendo que, através da cultura do diálogo, dá ao cidadão autonomia e percepção sobre realidade os problemas sociais vividos, tornando-lhes consciente de seu papel como ator social e, desse modo, compondo uma análise crítica sobre a realidade social local, que o conduz à luta pela concretização dos direitos constitucionalmente estabelecidos.
4. Experiências de Mediação Comunitária
4.1 Projeto Balcão de Direito
O programa Balcão de Direitos é um projeto promovido pela Organização Não Governamental (ONG) VIVARIO e é um exemplo consistente de mediação de conflitos em comunidades exponencialmente violentas. Fora implantado em diferentes estados brasileiros, sendo desenvolvido, no Rio de Janeiro, pela instituição.
Criado em 1997, o Balcão de Direitos promove, em favelas e periferias, o estabelecimento de espaços comunitários de mediação e conciliação e a democratização do conhecimento do direito e dos serviços públicos. Os Balcões mesclam conhecimentos acadêmicos, com as regras locais vivenciadas pelos moradores das favelas. Participam do projeto advogados, estudantes de direito e agentes de cidadania residentes nos locais.
O advogado Pedro Strozenberg, que já coordenou o projeto Balcão de Direitos, declara que
“Esta convivência produtiva e às vezes conflituosa das práticas locais e das normas gerais oferece legitimidade aos mediadores, possibilitando uma solução dialogada dos casos em disputa, além de uma ação preventiva. A médio prazo, o somatório dos atendimentos individuais contribui para o estabelecimento de uma cultura de não violência e de maior harmonia entre os vizinhos, familiares, colegas de trabalho, de escola etc.
Ampliar a comunicação entre as pessoas e sua autodeterminação é sobretudo possibilitar a redução dos recursos violentos de solução de controvérsias, sejam elas arbitradas pelo sistema legal (princípio de perde e ganha), pela força física (em geral marcada pela violência de gênero e etária) ou ainda pela nefasta contribuição das armas de fogo.” (Fonte: site VIVA RIO. <<http://www.vivario.org.br>>. Acesso em 19. Maio. 2010).
Segundo ele, a mediação comunitária contribuiu diretamente para:
“a) reforçar a cultura da paz, através do estímulo ao diálogo e o estabelecimento de pactos entre pessoas e instituições;
b) reforçar a democracia direta, através da participação cidadã em temas que envolvam interesses coletivos e o monitoramento do poder público;
c) aproximar o discurso do direito à realidade dos diferentes povos, respeitando as diferenças e fazendo destas um potencial de crescimento;
d) estimular o surgimento de novos paradigmas no tratamento de diferenças, produzindo transformações culturais em âmbito coletivo e individual;
e) atuar de maneira interdisciplinar e autônoma”
Apresenta, ainda, os seguintes desafios a serem superados nas práticas comunitárias, quais sejam:
“- baixa representatividade das instituições – a cultura da participação em instituições representativas das comunidades não é significativa, dificultando a existência de interlocutores institucionais com legitimidade deliberativa; a esta fragilidade somam-se interesses em controlar estas instituições de representação oficial, seja por razões eleitorais, sustentadas pelos políticos tradicionais, ou estratégicas, impostas por grupos locais através de coerção;
– a prática assistencialista típica das sociedades desiguais – onde a elite dominante concentra a riqueza e os meios de produção e distribuí, através do estado ou de instituições de caridade, “assistência” aos mais necessitados – contribui para uma situação de apatia e acomodação das comunidades;
– baixa responsabilização pelo espaço público, devido à pouca crença nos poderes públicos e à falta de continuidade das ações de governos;
– precariedade dos serviços prestados a moradores destas regiões por parte do poder público;
– alta incidência de armas de fogo nos bairros pobres (no caso das favelas brasileiras), estimulando uma cultura do poder violento;
– baixa auto-estima da população, que não raro sofre violências discriminatórias e sociais”. (idem)
E, por fim, salienta que apesar deste quadro de dificuldades, há um rico cenário de possibilidades de atuação na área da mediação de conflito, elencado entre elas:
“- alta presença de soluções criativas são germinadas nas próprias comunidade capazes de suprir inexistência ou deficiências de serviços públicos;
– abertura para absorção de novas práticas de tratamento de conflitos. Em geral as comunidades são mais flexíveis pela sua própria estrutura muito informal;
– capacidade de estabelecer pontes entre o ambiente legal e o ambiente informal, interagindo com as dinâmicas sociais de acordo com as possibilidades existentes,
– adaptabilidade aos distintos contextos e espaços existentes nas favelas e periferias oferecendo ferramentas comuns para situações diferentes. Assim pode ser implantado nas escolas, associações de moradores, policiamento comunitário, posto de saúde etc;
– mescla a prestação de serviço com atividades educativas;
– exige conhecimentos técnicos específicos. Valoriza mais o perfil do que o conhecimento específico do mediador;
– permite que todos participem;
– valoriza e reconhece muitas das práticas já existentes nestas comunidades, apenas Agrega conhecimento para sua potencialização.” (idem)
Assim, diante de um modo de vida onde as pessoas não são assistidas em seus direito individuais e sociais, na tentativa de melhorar a qualidade de vida através da pacificação e participação social, a instituição VIVA RIO oportuniza aos residentes em comunidades a participarem concretamente do Estado Democrático de Direito, através da mediação comunitária, promovendo, assim, a dignidade humana, uma vez que as mesmas se tornam capazes de compreender a sua realidade e, de por si, resolver suas controvérsias.
4.2 As Casas de Mediação Comunitária – Experiência do bairro Parangaba (Fortaleza /CE)
A Casa de Mediação Comunitária – CMC é um programa do governo do Estado do Ceará, no início executado pela Ouvidoria Geral (1998), sendo atualmente administrado pelo Ministério Público Estadual – MPE.
Em relatório de atividades do MPE, elaborado em 2008, este órgão jurisdicional específica como missão do programa: contribuir para o desenvolvimento de uma cultura de paz, promovendo a pacificação social, o fortalecimento dos vínculos comunitários e a prevenção e solução de conflitos, abrindo assim, novos caminhos para uma positiva transformação sócio-cultural, e como objetivo específicos os seguintes:
“I. estimular a formação de NÚCLEOS DE MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA nos municípios do Estado do Ceará, estabelecendo parcerias entre o Ministério Público do Estado do Ceará e entidades públicas e privadas, de modo a proporcionar à comunidade o exercício efetivo da cidadania participativa;
II. estabelecer parcerias com entidades relacionadas à mediação e arbitragem, objetivando a colaboração no processo de criação dos NÚCLEOS DE MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA;
III. estimular a implementação de NÚCLEOS DE MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA nos diversos municípios cearenses, com a decisiva participação do membro do Ministério Público;
IV. viabilizar, a partir da implantação dos NÚCLEOS DE MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA desburocratizado, gratuito e eficiente à comunidade;
V. incentivar a organização da sociedade civil para o exercício da cidadania participativa;
VI. estimular a formulação de projetos de inclusão social;
VII. gerenciar planos de capacitação de mediadores comunitários;
VIII. sensibilizar a população sobre a relevância da solução pacífica dos conflitos;
IX. viabilizar na comunidade um espaço gratuito de escuta-fala para resolução de controvérsias;
X. fomentar a instalação de NÚCLEOS DE MEDIAÇÃO COMUNITÁRIA, com o escopo e contribuir para a redução da violência, pela solução pacífica dos conflitos;
XI. contribuir para a melhoria da qualidade de vida da comunidade;
XII. incentivar a prática do serviço voluntário na comunidade;
XIII. instituir permanente hábito de estudos e pesquisas, visando à implantação de projetos que promovam a cultura da paz;
XIV. orientar a comunidade sobre direitos e deveres dos cidadãos;
XV. exercer outras atribuições compatíveis com a filosofia do Programa”
A professora Lilia Sales, em trabalho publicado nos anais do XVII Congresso Nacional da Conpedi, em Brasília, aduz que
“As casas de mediação comunitária oferecem às comunidades periféricas um canal para o exercício da cidadania. É um projeto que visa a aproximar as comunidades para a realização do projeto, já que encontra nos moradores locais e líderes comunitários a equipe ideal de trabalho. Pretende-se com este projeto diminuir a exclusão social vivida por esses indivíduos, pois não é possível viver a democracia ou direito de escolha quando parte da população vive à margem de qualquer decisão.” (2008, p. 718)
A instalação de uma Casa de Mediação ocorre primeiramente através de uma reunião de sensibilização. Nesta reunião, explica-se o projeto da Casa de Mediação: a missão e objetivos da Casa, o perfil do mediador, o trabalho do mediador, o processo de mediação, o funcionamento da Casa e todos os assuntos referentes ao tema.
Realizada essa primeira reunião, inicia-se a segunda fase, que é o recrutamento e seleção dos mediadores, sendo realizado um curso de capacitação com duração de, no mínimo, 40 horas, o qual visa ao primeiro treinamento dos candidatos a mediadores, já que o treinamento é contínuo.
O curso de capacitação possibilita o início dos trabalhos na Casa. É feita uma reunião para que mediadores sejam apresentados à comunidade e para que se iniciem os processos de formação de parcerias. Determinados problemas, tais como: que fogem à competência da Casa de Mediação devem ser encaminhados para os órgãos competentes.
Por seu turno, os mediadores das CMCs são escolhidos entre os membros da própria comunidade que se colocam à disposição para se integrar ao projeto das Casas, participam dos cursos de capacitação e passam a mediar conflitos.
O fato de o mediador ser um cidadão da própria comunidade condiz com o caráter democrático deste processo autocompositivo, porquanto ele é a figura que melhor conhece a comunidade, por fazer parte da mesma, perfaz a inclusão social, através da medida educativa contida na capacitação que lhe é concedida, bem como na sua atividade realizada, em essência, de modo voluntário, é clara manifestação de exercício de participação cidadã.
No Ceará, há atualmente sete casas de mediação, das quais três se encontram na capital do estado, sendo uma delas localizada no bairro da Parangaba.
Ao analisar os dados quantitativos e qualitativos do núcleo de mediação comunitária da Parangaba, em Relatório de Atividades realizado pela Coordenação do Núcleo de Mediação Comunitária do Ministério Público do Estado do Ceará, percebe-se que dos processos de mediação comunitária ingressos no núcleo, excluindo-se os atendimentos para esclarecimento sobre direitos e deveres e encaminhamentos dos casos não cabíveis a à mediação aos órgãos competentes, 75% dos conflitos tem sido, de alguma forma solucionado.
Saliente-se que as maiorias dos conflitos existentes nesta comunidade estão relacionadas a divergências entre vizinhos, espécies de conflitos que jamais alcançariam as vias tradicionais de resolução de conflito, seja pela carência de informação dos indivíduos ou mesmo pela parca escala financeira do conflito.
E, a parca escala, é bom que se frise, não significa pouca importância, até porque, nessas comunidades, em que se vive no limite da miséria, mesmo a mais simples das lides, pode tomar proporções maiores, posto que em meio a estas realidades, onde a dignidade das pessoas é constantemente maculada, cada indivíduo acaba por manter-se em um permanente estado de autodefesa.
Analisando pesquisas realizadas junto aos mediados e mediadores da CMC da Parangaba,,muitos daqueles consideram a mediação comunitária um excelente meio de resolução de conflitos, bem como, declararam sentir-se capazes de, após a mediação, resolverem sozinhos seus conflitos futuros.
Na percepção dos mediados, este procedimento visa auxiliar o Poder Judiciário, buscando resolver os conflitos por meio do diálogo entre as partes, de uma maneira justa e, ainda, incentiva-os a buscar seus direitos.
Segundo os mediadores, a mediação comunitária é um instrumento democrático de acesso à justiça (resolução de conflitos), pois trata as partes envolvidas de forma igualitária, capacitando-as à por si resolverem seus problemas, alem de orientá-las e conscientizá-las de seus direitos e deveres, o que lhes concede um sentimento de cidadania e impulsiona a uma participação social mais efetiva.
Portanto, afere-se que a mediação comunitária é uma eficiente ação horizontal de participação popular, uma vez que esta capta os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas mais vulneráveis da sociedade. Atingindo os indivíduos residentes nestas localidades, numa abordagem sócio-interacionista calcada no diálogo e na reconstrução cultural, aplicando aspectos cruciais à participação social, ascendendo-os a condição de sujeitos sociais e ocasionando um verdadeiro processo de redemocratização.
Por Vanessa do Carmo Nascimento, acadêmica de Direito da Faculdade Católica Rainha do Sertão, Quixadá/CE
Fonte: Âmbito Jurídico – Dezembro 2010
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1 de dezembro de 2010 |

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