Alto preço da Justiça e exigência de tentar acordos reduzem ações na Inglaterra

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Enquanto o Brasil aposta na Lei de Mediação (Lei 13.140/2015) e a nova Lei de Arbitragem (Lei 13.129/2015), aprovadas neste ano, para reduzir a entrada de processos na Justiça, na Inglaterra, a busca por soluções fora dos tribunais é a regra. Muito porque lá é muito caro levar um caso para a Justiça. Essa é uma das muitas diferenças entre a Justiça da Inglaterra e a do Brasil, apontada pelos advogados britânicos Charlotte Tregunna, do Peters & Peters Solicitors LLP e Duncan Grieve do Morrison Foerster.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, eles apontaram para a importância, e quase que exigência, de se tentar um acordo antes de judicializar a questão, o que ajuda, e muito, a evitar avalanches processuais. “Se no final do processo judicial a parte que perdeu não comprovar que houve uma negociação prévia, se ela simplesmente se recusou a ter qualquer diálogo e levou o caso diretamente para os tribunais, a corte pode elevar os custos. Nós temos um protocolo pré-ação que quase nos força a ser seguido. Se a parte não segue, a penalidade vem na corte”.
Além disso, o direito de questionar decisões judiciais também é limitado e está sujeito a aprovação do próprio juiz. Nesse caso, a parte deve provar que o ponto é muito complexo e controverso e que talvez tenha sido decidido erroneamente. “Muitas vezes, a permissão é recusada”.
A ideia do processo eletrônico nos tribunais britânicos está longe de ser uma realidade na ilha, lá tudo ainda é feito no papel. Isso porque, para implantar os processos digitais, segundo os advogados, não é só o sistema que vai precisar mudar, as pessoas devem mudar também. “Isso poderia sufocar o sistema. Nesse momento, não temos necessidade dessa mudança. O processo digital brasileiro é muito impressionante para nós. Ao menos o conceito, especialmente para as apelações civis.”
Os dois são advogados na categoria dos “solicitors”, ou seja, atuam diretamente com o cliente e não na corte. Eles fazem parte de um grupo de cinco profissionais britânicos que participaram do programa de intercâmbio promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil em parceria com o Bar Council of England and Wales e a Law Society of England and Wales. No ano passado, nove advogados brasileiros foram selecionados para participar da primeira edição do intercâmbio em Londres.
Grieve e Charlotte acompanharam o dia a dia do Escritório Innocenti Advogados Associados, por uma semana. Segundo o advogado Marco Antonio Innocenti, sócio do escritório, essa mistura cultural deve ser incentivada não só pelo Conselho Federal da OAB, mas pelos próprios tribunais e pelas outras entidades que representam a advocacia. “É muito rico ter essa convivência e podemos perceber que os nossos números no geral, seja de processos e de advogados, são gigantescos no Brasil.”
Leia a entrevista:
ConJur — Quais são as principais diferenças entre a Justiça Brasileira e a Justiça Britânica?
Charlotte Tregunna — As principais diferenças que eu não havia notado antes vir para o Brasil estão entre o sistema federal e o sistema estadual. Nós não temos essa diferença. Existe apenas uma diferença entre Civil e Criminal.
Duncan Grieve — A lei comum se aplica em todos os casos, não há uma situação específica que exija que um determinado grupo de leis seja aplicado. No geral, o sistema da corte que usamos e a lei que aplicamos é a mesma coisa.
ConJur — E em relação à cultura dos dois países para lidar com o Direito?
Duncan Grieve — Há grandes diferenças culturais, especialmente no jeito como as pessoas abordam a lei no Brasil. Por ter uma cultura de litígio, fomos informados que há um caso ativo nos tribunais para cada dois habitantes brasileiros.
Charlotte Tregunna — Isso é uma grande diferença. Na Inglaterra e em Gales, há uma disposição maior para tentar encontrar uma solução fora dos tribunais. E isso porque, especialmente na Inglaterra, é muito caro levar um caso para a Justiça, então as pessoas tentam evitá-las quando podem. No Brasil, as pessoas vão à corte muito rápido.
ConJur — Tenho a impressão de que, no Brasil, ao tentar encontrar soluções fora dos tribunais, as partes não se sentem confiantes em ceder em uma negociação para conseguir chegar a um acordo…
Charlotte Tregunna — Na negociação, é possível conversar com cada parte e descobrir o que elas querem para se chegar a um acordo. Então, na Inglaterra, temos um ambiente que parece mais uma situação de ganho para ambas as partes, ainda que uma delas tenha que ceder mais que a outra. Existe uma vontade geral de fazer um acordo que seja benéfico para todo mundo. No entanto, nem sempre isso acontece, porque as pessoas, às vezes, não querem ceder tanto quanto a outra parte gostaria. E um cenário como esse acaba progredindo para o tribunal. É o risco.
ConJur — Como são determinados os custos de cada ação? Por que na Inglaterra entrar com um processo é tão caro?
Duncan Grieve — As cortes britânica tem o poder de designar os custos à parte perdedora. E não só as taxas administrativas do processo, mas também os custos da parte ganhadora com seus advogados. E isso faz muita diferença nos sistemas, e é o grande incentivo para tentar resolver o problema num acordo. E se, no final do processo judicial, a parte que perdeu não comprovar que houve uma negociação prévia, se ela simplesmente se recusou a ter qualquer diálogo e levou o caso diretamente para os tribunais, o tribunal pode, inclusive, elevar os custos. Ou seja, existe um potencial de uma grande pena financeira e um grande risco por ter se levado aquele problema ao litígio.
Charlotte Tregunna — Nós temos um protocolo pré-ação que quase nos força a ser seguido. Se a parte não segue, a penalidade vem na corte.
ConJur — Para que a negociação se viabilize, as duas partes devem ter um advogado? Como isso funciona?
Charlotte Tregunna — Sim. Existe um procedimento de mediação na Grã-Bretanha. As duas partes devem ter advogados. No começo da discussão, as duas partes são separadas e conversam individualmente com o mediador para dizerem suas intenções. O mediador fala das vontades da contraparte para cada uma das partes.
ConJur — Então as duas partes não se falam?
Charlotte Tregunna — Elas podem se falar. O mediador pode colocá-las no mesmo lugar para discutir uma possível solução. Mas isso depende muito do mediador e também de como a mediação transcorre.
Duncan Grieve — Também é necessário entender que mesmo que seja uma negociação antes do litígio formal, isso não significa que não há nenhuma estratégia. Por isso é importante ter advogados envolvidos, para decidir sobre o jeito de conduzir as negociações: uma conversa cara a cara ou por meio de cartas, por exemplo.
ConJur — É possível escrever cartas durante uma negociação?
Charlotte Tregunna — A parte deve escrever. Faz parte do processo. A carta vem antes da ação. É isso que pontua a história e a reclamação de cada um. Com isso, a outra parte pode tanto tentar resolver a situação ou argumentar em uma carta resposta.
ConJur — Já que é tão caro ir para os tribunais, as pessoas não entendem que o tribunal é só para os ricos? Elas sentem que não têm os mesmos direitos?
Duncan Grieve — Esse é um grande debate político que vem acontecendo agora. Há dois fatores: os custos nos tribunais estão aumentando e o suporte legal disponível para dar acesso gratuito ao sistema legal vem recebendo cada vez mais cortes. Então há uma grande controvérsia quanto aos custos dos procedimentos legais na Inglaterra. A sua pergunta é exatamente um dos argumentos das pessoas que criticam esse sistema.
Charlotte Tregunna — No Brasil, existe o conceito do defensor público. Na Inglaterra não é assim, nós temos o conceito da ajuda legal. Com isso, a parte que está sendo acusada pode pedir um financiamento do governo para contratar um advogado particular. O problema é que esse dinheiro destinado ao pagamento dos advogados particulares vem diminuindo. Cada vez menos pessoas têm acesso a bons advogados — a menos que eles cobrem barato.
ConJur — Quanto tempo o juiz pode ocupar o cargo na magistratura? No Brasil, os juízes devem se aposentar ao completar 75 anos.
Charlotte Tregunna — Outra diferença entre nós é que para se tornar juiz, no Brasil, o profissional precisa atuar apenas três anos como advogado. Na Inglaterra, eles têm que ter uma longa carreira como advogado antes de virar juiz. Quando eles já estão bem estabelecidos, são indicados ao cargo.
Duncan Grieve — Nós temos uma idade para aposentadoria, mas muitos juízes estão se aposentando mais cedo porque estão preocupados com o número de casos que precisam cuidar e acham que não têm o suporte necessário ou que gostariam. Eles são muito qualificados. Adoraríamos mantê-los pelo máximo de tempo possível.
ConJur — Como funcionam os sistemas de compliance no Reino Unido?
Duncan Grieve — Os sistemas da Inglaterra e do Brasil são similares em algumas situações. Nós temos novas legislações desde 2010, e um novo foco no Reino Unido em procedimentos de compliance. Isso porque muitas empresas estavam perguntando a seus advogados como elas deveriam se adequar a essas novas legislações. Com isso, criou-se uma linha de procedimentos apropriados que fizessem com que as empresas se adequassem. Mas esses procedimentos levam um tempo, não acontecem do dia para a noite. Acredito que o que está acontecendo no Brasil é semelhante. Essa nova legislação está agora em vias de ser ativada, as empresas estão falando com seus advogados e eles estão decidindo o que precisam fazer.
ConJur — Você pode pontuar alguma similaridade?
Duncan Grieve — As companhias que atuam no Brasil precisam seguir uma lista de procedimentos de compliance para conseguir se adequar e conseguir benefícios. Essas características de um programa de compliance eficiente são muito semelhantes às que estão contidas no guia do Bribery Act, de 2010, no Reino Unido, e do FCPA, nos Estados Unidos. Para mim, isso significa que cada vez mais essas características têm se tornado um consenso internacional do que um programa de compliance deve ser. A maioria dos países tem chegado a um senso comum. Então se as pessoas do Brasil estão incertas, elas podem ver o que tem sido feito nos Estados Unidos e no Reino Unido e isso pode lhes indicar um bom caminho a seguir.
ConJur — Em relação ao direito de defesa, todo mundo precisa de advogado para ir para à corte?
Charlotte Tregunna — Não. A pessoa pode se representar. De fato, se a pessoa se representa, o juiz tende a ver isso com bons olhos e espera dos advogados da outra parte um certo tipo de colaboração, em vez de vê-los sendo mais agressivos que o normal por saberem que aquela pessoa não tem um advogado.
ConJur — A atuação de advogados estrangeiros é proibida no Brasil. Eles podem apenas prestar consultoria. Qual é a sua opinião?
Charlotte Tregunna — No Reino Unido, estrangeiros que forem aprovados no teste da classe podem praticar o Direito. Muitos dos advogados qualificados que trabalham lá são estrangeiros. É bom para o Brasil ter essa comunicação com profissionais de fora.
Duncan Grieve — Acho que programas como esse intercâmbio realmente podem ajudar. Não podemos praticar e nem trabalhar no Brasil, mas podemos fazer parcerias e entender mais das leis brasileiras e como o sistema funciona.
ConJur — Vocês conhecem algum advogado brasileiro que atua no Reino Unido?
Charlotte Tregunna — Sim, há um escritório de advocacia somente com brasileiros em Londres. A minha empresa, por exemplo, tem parcerias com advogados brasileiros.
Duncan Grieve — Há vários exemplos bons do Brasil, como a operação “lava jato”. Vários profissionais que atuam no caso em Curitiba tiveram educação legal nos Estados Unidos e o jeito como eles conduziram essa investigação certamente teve influência disso.
ConJur — Na operação “lava jato”, a delação premiada está sendo muito usada. Vocês acham que adaptar o sistema para o Brasil funciona?
Duncan Grieve — Isso é uma questão para os brasileiros. Mas é óbvio que o país mais bem sucedido em lutar contra a corrupção é os Estados Unidos.
ConJur — Muitos advogados reclamam das limitações no que diz respeito à propaganda de escritórios no Brasil. No Reino Unido, a propaganda de advogados é liberada?
Duncan Grieve — Isso funciona para alguns tipos de escritórios. A maioria das bancas fazem propaganda em Londres. Mas normalmente são empresas que trabalham com casos de danos morais. Uma firma boutique, por exemplo, não faz tanta propaganda ou tem propagandas mais discretas.
ConJur — O que os clientes esperam dos advogados na Inglaterra?
Charlotte Tregunna — Depende do cliente. Alguns são mais informais que outros. Com o tempo, você desenvolve um certo relacionamento com o cliente. Para alguns clientes meus, ser informal, usar Whatsapp, mensagens de textos, é totalmente inapropriado. Para outros não. A disponibilidade, a confiança, a excelência no que fazem ainda é o que faz a diferença. E os advogados devem provar essas qualidades com seus resultados.
Duncan Grieve — O mercado legal de Londres é um dos mais competitivos do mundo. Então se presume que o serviço legal será de excelência. Mas acho que o que os clientes querem agora é que as bancas entendam seus negócios e não somente as questões legais. Como advogado, você ter que ir um passo além e entender o motivo de o seu cliente estar fazendo aquela pergunta.
ConJur — Quantos níveis de apelação existem na Inglaterra?
Duncan Grieve — Dois. Há outra grande diferença entre os nossos sistemas e é como o processo de apelação acontece. Na Inglaterra, por exemplo, em uma disputa comercial de valor alto, o processo vai para a High Court, que é a corte de primeira instância para grandes disputas. Se você consegue um julgamento, é preciso pedir permissão ao juiz para apelar e essa apelação deve ser feita em cima de um ponto concreto, não apenas como uma formalidade. Muitas vezes, a permissão é recusada. Se o caso chegar ao segundo nível de apelação, então serão três juízes avaliando o caso e que chegam a uma decisão. Se a parte quiser apelar da decisão deles, mais uma vez será preciso pedir permissão para levar o caso à Suprema Corte, que normalmente só ouve casos nos quais há um interesse público. Dessa forma, há um controle de quantos casos serão ouvidos.
ConJur — Qual é o requisito para que a permissão para apelar seja concedida?
Duncan Grieve — Quando a parte diz que houve um erro no jeito como o juiz decidiu ou se ela provar que o ponto é muito complexo e controverso e que talvez tenha sido decidido erroneamente. Além disso, existe a jurisprudência. Se houver um caso semelhante antes, a decisão deve ser a mesma. As nossas fontes na lei comum são a legislação e a jurisprudência. O juiz segue uma linha de pensamento com base nos precedentes.
ConJur — Os clientes podem falar diretamente com o juiz ou só o advogado?
Charlotte Tregunna — É sempre o advogado que fala. O cliente pode acompanhar.
ConJur — Os clientes devem sempre estar presente na corte ou podem usar vídeo?
Charlotte Tregunna — Não, mas é sempre melhor que estejam. Assim é que eles podem ver o que o advogado está fazendo. No tribunal, não é permitido levar telefones. Há uma controvérsia hoje por conta do Twitter. A princípio não se pode ter tweets ao vivo porque isso seria como um vídeo. Em alguns processos, no entanto, é permitido aos jornalistas twitarem.
Duncan Grieve — Durante a seção, não é possível tirar fotos, nem filmar. Por isso que nos jornais, quando a história é sobre um caso na corte, existem desenhos do que aconteceu ali.
ConJur — As Universidades de Direito na Inglaterra são bem avaliadas? No Brasil há a ideia de que as universidades estão apenas preparando os estudantes para os exames e concursos.
Charlotte Tregunna — Há poucas universidades que dão o certificado de Direito. Existe um sistema diferente de educação para o Direito e há muitas universidades que não são exatamente boas para advogados, mas isso é em todo lugar.
Duncan Grieve — A educação de Direito em qualquer lugar e também no Reino Unido é muito cara. O problema é ter essa educação tão cara, mas pouco espaço para as pessoas trabalharem como advogados.
ConJur — A maioria das universidades na Inglaterra são públicas ou privadas?
Charlotte Tregunna — Não temos faculdade pública. É possível pegar empréstimos com o governo e depois pagar. Nada é de graça. Essa é a crítica. Custa muito caro estudar em uma universidade. Muitos não conseguem bancar e depois não podem trabalhar como advogado.
ConJur — É necessário ser aprovado em um exame para que o profissional possa atuar como advogado, depois da graduação? No Brasil, por exemplo, o bacharel em Direito precisar passar pelo Exame de Ordem para atuar no mercado.
Duncan Grieve — Há testes, mas não é o fim do processo. Há diferentes caminhos para trabalhar como Solicitor ou como Barrister. Uma vez passando no teste de advogado, a pessoa precisa ter experiência numa empresa. Há dois caminhos: para os Solicitors, é preciso fazer três anos de graduação em Direito, um ano de educação acadêmica profissional e dois anos trabalhando num escritório de advocacia. Então são seis anos. Ou é possível cursar três anos de graduação em algum outro curso, um ano de curso de conversão, um ano de curso acadêmico legal e dois anos num escritório de advocacia. E, nesse caso, ao todo são sete anos.
ConJur — O Reino Unido já atua com o processo eletrônico nos tribunais?
Charlotte Tregunna — O processo digital brasileiro é muito impressionante para nós. Ao menos o conceito, especialmente para as apelações civis. Nós não temos uma infraestrutura como essa no Reino Unido, é tudo no papel. É possível enviar e-mails para o juiz, mas não é muito comum. É uma experiência única ver algo como isso num país, sendo feito digitalmente. Isso pode deixar tudo mais eficiente. O problema é passar tudo que já está no papel para o digital. Essa é a complicação para a gente implementar esse procedimento agora.
ConJur — O que é mais difícil no processo digital?
Charlotte Tregunna — Não é só o sistema que deve mudar, as pessoas devem mudar também. Isso poderia sufocar o sistema. Nesse momento, não temos necessidade dessa mudança.
ConJur — O que vocês sugerem aos juízes do Brasil para lidar com a lentidão processual?
Charlotte Tregunna — Na Inglaterra também temos muitos casos, mas é uma questão de escala. Há uma grande preocupação de os casos progredirem rapidamente e eficientemente. Todo mundo entende que há um cronograma rígido a ser seguido.
Por Livia Scocuglia, editora da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2015, 8h31
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19 de julho de 2015 |

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