Arbitralistas, temos um sério problema (II)! (Desgraça pouca é bobagem)

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Dedicamos este artigo aos leitores que sobreviveram à leitura do primeiro.
Vamos lá!
Entre os objetivos inefáveis do projeto de lei ora comentado, alguns deles já apresentados no artigo anterior, há que ressaltar outro (caso seja possível destacar uma séria impropriedade ao lado de muitas outras) concernente à colaboração dos árbitros na busca da paz social das pessoas e das instituições, de forma a que seja introduzido na cultura brasileira novo componente para a solução de problemas, como sejam a inteligência e a criatividade. Acentue-se – introduzir na cultura mediante lei!
De início note-se haver o nobre deputado afirmado que até este momento o Judiciário e o instituto da arbitragem não têm agido com inteligência nem com criatividade, componentes que seriam novos! Portanto, colegas árbitros, até agora nos processos arbitrais e em nossas decisões (quando ocupamos ou temos estado de árbitros) teremos sido “burros, asnáticos”, queiram nos desculpar os termos, mas é, desafortunadamente, o que se depreende da leitura do texto de tal projeto.
De outro lado, vindo a ser aprovada a proposta (verdadeiro pesadelo, não?), aos árbitros caberá uma séria responsabilidade, pois suas sentenças deverão ser voltadas para que seja alcançada a paz social e a das instituições. Que instituições?
O que seria paz social em uma arbitragem? Considere-se que ela tem como integrantes duas partes, simples ou plurais (complexas), e que os efeitos da sentença arbitral não poderão ultrapassar os limites da lide, ou seja, da controvérsia definida pela inicial e contestação. Ad argumentandum, suponha-se que a referência tenha sido feita no âmbito de sociedades empresárias, nas quais os sócios estejam, indesejavelmente, em atrito interno uns com os outros, almejando-se que a paz entre eles seja alcançada em benefício da continuidade das atividades empresariais. Sócios em briga, vocês se esqueceram de que se reuniram dentro do espírito do escopo comum, que alguns advogados pedantes chamam de affectio societatis?
E, além disto, de que instituições se trata nessa seara? As instituições sociais, que preservam a democracia, por exemplo? Neste caso nossa responsabilidade se tornará muito mais agravada, pois, conforme seja proferida sentença que não seja aceita como promotora da paz social, vale dizer, extra societária se isto for possível, o estado democrático de direito se encontrará em grande perigo.
Por outro lado, requerer-se criatividade na arbitragem, além da inteligência dos atores nos parece alguma coisa contrária à legalidade. Isto porque os árbitros (tal como os juízes togados), não podem (melhor, não devem) ser criativos. Seu papel é o de pura e simplesmente aplicar a lei, especialmente quando se trata de arbitragem de direito. E mesmo no caso da arbitragem por equidade, isto não significa que os árbitros tenham recebido um cheque em branco das partes para modelarem sentença que considerem justa, segundo critérios de natureza subjetiva que, demais disso, teria de ser unânime.
Seguindo adiante na análise desse projeto, ele se mostra como um gigantesco enredo de filme de terror, pois a narrativa assustadora vai crescendo conforme os fatos se desenrolam na tela do nosso laptop.
Somente poderão ser árbitros as pessoas que atendam aos requisitos de capacidade e demais exigências legais (quais?), segundo os quais a profissão de árbitro somente poderá ser exercida dentro de um regime de pura reserva de mercado, desde que os favorecidos possuam: (I) diplomas ou certificados devidamente registrados nos Conselhos Regionais e/ou Federal, de escolas oficiais ou reconhecidas no País; e (II) diploma de faculdade ou escola estrangeira de ensino mediante diploma devidamente revalidado e registrado em nossas plagas, ou tenha exercício amparado por convênios internacionais de intercâmbio. Há uma abertura no final (que maravilha!) para quem tenha comprovado o exercício de dois anos, leia-se, tenha experiência prática, junto ao Conselho dessa profissão, a quem será conferido o direito de continuar a exercê-la nem que, para tanto, a comprovação dependa da quebra do sigilo relativamente às arbitragens nas quais o interessado tenha anteriormente trabalhado. Estamos salvos!
Esta segunda possibilidade desejamos ardentemente ver efetivada, pois teríamos a oportunidade de estar diante de um verdadeiro milagre, uma vez que não temos conhecimento de que haja, no mundo inteiro, escolas que diplomem árbitros, nem jamais ouvimos falar de convênios de tal natureza.
A partir do momento em que o projeto seja aprovado, somente pessoas autorizadas poderão usar o título de árbitro ou mediador, considerando-se exercício ilegal da profissão quem o fizer em descumprimento com as exigências legais.
O projeto também cuida da responsabilidade dos árbitros, dotado de normas exclusivamente voltadas para o campo penal. Neste sentido, podem responder por crimes de peculato, nas suas modalidades de apropriação ou posse; extravio, sonegação ou utilização de livro ou documento; concussão, quando exigir vantagem indevida; excesso de exação, se exigir, taxas e emolumentos indevidos; corrupção passiva, quando solicitar ou aceitar vantagem indevida; prevaricação, quando retardar ou deixa de praticar, indevidamente, ato de ofício; condescendência criminosa em relação a funcionários subordinados; violência arbitrária no exercício da função e violação do sigilo funcional.
Uma pergunta, a quem caberá a denúncia? A qualquer das partes, violando assim o sigilo da arbitragem, especialmente quando se tratar de crime de ação privada? Apropriação do que, considerando que os árbitros não têm disponibilidade dos bens do autor e/ou do réu na arbitragem? Dessa forma, nenhum deles poderá dirigir um Porsche, uma Ferrari, ou viajar em um jato de 60 lugares e totalmente equipado, de qualquer das partes, o que será uma pena.
Quanto ao excesso de exação, perdoem-nos a ignorância, mas, pelo que sabemos, trata-se de crime previsto no art. 316 do Código Penal, típico de funcionário público contra a administração pública, não sendo esta parte nas arbitragens privadas.
No tocante à prevaricação, correspondente a praticar ou deixar de praticar indevidamente ato de ofício, como isto poderia acontecer, tendo em conta que se revela como ato praticado pela Administração Pública independente de pedido do interessado. Ora, na arbitragem são os próprios árbitros ou as partes que executam os atos relativos à condução do processo arbitral, e não terceiros estranhos seja ao Tribunal Arbitral, seja não envolvidos no procedimento, e muito menos a Administração Pública.
Violência arbitrária revela-se coisa muito séria, pois os árbitros perderiam a liberdade de aplicar penalidades por litigância de má fé contra a parte que, sistematicamente, age para obstruir o bom andamento do processo arbitral.
É claro que um projeto como este não poderia deixar de prever as penas a serem aplicadas aos árbitros pelo descumprimento de suas obrigações. E elas são a advertência reservada, a censura pública, a multa, a suspensão temporária do exercício profissional e o cancelamento do registro. Essas penalidades teriam lugar nos casos do exercício ilegal dessa nova profissão, o que se coloca no simples plano de uma irregularidade formal. E sua imposição poderá ser feita pelas câmaras especializadas dos conselhos previstos pelo projeto ou pelos conselhos regionais, dos quais falaremos em seguida.
A operacionalidade das disposições do projeto se dará pela atuação dos órgãos por ele criados, na forma, principalmente, de um conselho federal e de conselhos regionais, criando-se todo um aparato burocrático para agir na defesa da tão honrosa profissão de árbitro. Será uma verdadeira festa para quem for indicado como gestor de tais conselhos e dos seus subórgãos, todos merecedores de justa remuneração. E esta, somada ao custo desse aparelhamento da arbitragem, deverá ser paga, evidentemente, por quem dela fizer uso, o que, imagina-se, ficará certamente muito mais caro do que os custos hoje suportados na esfera da arbitragem institucional.
Não vamos perder tempo na descrição do sistema de autorização e de fiscalização da profissão de árbitro. A canseira já nos derrubou, foi demais.
Depois de todo esse pesadelo, podemos passar os olhos para a justificação apresentada para essa jabuticaba, esse projeto, terminando pelo que deveria estar no começo. A opção pela discussão pregressa foi construir um exercício indutivo, útil para verificar se nossas conclusões encontram respaldo para a criação de toda a parafernália aqui apresentada.
Não deu outra. Os termos da aludida justitificação falam de redução do “custo Brasil”, que se relaciona à incerteza legislativa, ao fato de que neste país, como já disse alguém, até o passado é incerto, colocando nas mãos dos árbitros responsabilidade que, nós árbitros mortais jamais havíamos tido qualquer percepção. Somos importantes mesmo, não é verdade? No plano nacional, internacional e em um futuro não remoto, quem sabe, intergalático.
De outro lado, a litigiosidade do processo arbitral deverá ceder lugar para a técnica, a inteligência e a criatividade. Neste sentido propomos, como exigências complementares, que candidatos a árbitros sejam avaliados pelo seu QI (Quociente de Inteligência e não Quem Indica), a par da demonstração de serem tecnicamente capazes e para conseguirem inventar um novo direito. Abaixo a Força e a Coerção! Somente executará a sentença o perdedor que voluntariamente assim o desejar, para tanto movido pelo seu sentimento de nacionalidade e de consciência de sua participação em um mundo global. Afinal trata-se de fomentar a paz social e mundial em relação às quais somos plenamente a favor, tanto como as candidatas a “miss”.
Vamos todos nós, árbitros, tal como requer o projeto, contribuir para o desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza, mancha que a sociedade humana não conseguiu apagar em todos os milênios de sua existência.
Ave árbitros, os que forem agraciados com o vosso trabalho vos saúdam!
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Por Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. E Rachel Sztajn, professora sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.
Fonte: Migalhas – 30/8/2017
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30 de agosto de 2017 |

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