Como se pode fazer mediação na Administração Pública?

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Entra em vigor, no dia 26 de dezembro de 2015, após 180 dias de vacatio legis, a Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015, que “Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública”.
A Lei de Mediação, como está sendo denominada, é considerada um marco legal regulatório específico[1] em matéria de resolução alternativa de conflitos, que tem como escopo uma virada cultural, ou seja, uma mudança de paradigma no sistema de justiça brasileiro, ainda pautado de forma massiva na litigiosidade processual.
Porém, para que essa mudança ocorra, exige-se uma verdadeira alteração no comportamento de toda a sociedade e, no caso específico da Administração Pública, uma mudança estrutural, uma vez que a cultura da burocracia paralisante ainda domina o cenário público.
Como diria o poeta Drummond, “no meio do caminho tinha uma pedra”, ou melhor, tem duas pedras: as chamadas pedras de toque[2] do Direito Administrativo, conhecidas como princípio da supremacia do interesse público e princípio da indisponibilidade do interesse público. Como fazer o diálogo entre estes importantes princípios com os instrumentos alternativos de resolução de conflitos, como a mediação?
Para que esse diálogo ocorra, efetivamente, será necessário colocarmos um óculos 3D para que possamos enxergar uma Administração Pública democrática – que retire as pedras do caminho – e seja construída, segundo propõe José Sérgio da Silva Cristóvam, sob uma perspectiva mais consensual, dialógica, isonômica, democrática e de construção plural das decisões administrativas, ou seja, forjada em um regime jurídico-administrativo baseado na trindade principiológica estruturante da dignidade humana, do estado democrático de direito e do princípio republicano[3].
Só assim poderemos fazer uma travessia de um modelo autoritário para outro baseado na alteridade: dialógico.
Antes de sonharmos é importante destacar que o Estado é o maior litigante no sistema de justiça, de acordo com os dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[4] e que ultrapassamos a marca de 100 milhões[5] de processos em tramitação no Brasil. Os dados do CNJ apontam, ainda, que 27% dos mais de 100 milhões de processos são da área fiscal, o que significa dizer que o Poder Judiciário acaba desempenhando um papel de administrador das dívidas do Estado.
Emerge, diante deste cenário, a necessidade de a Administração Pública investir, urgentemente, em uma cultura pautada em soluções alternativas de conflitos, apostando na conciliação e na mediação, pois os números dão sinais de que nós gastamos muito e não estamos sendo eficientes para administrar as demandas judiciais e os conflitos que orbitam os processos.
A tarefa não é simples e exige criatividade de todos os operadores do Direito, que precisam estar em permanente diálogo na direção das mudanças que se fazem necessárias, especialmente em momentos de crise como a que estamos vivenciando.
Obviamente, os números apresentados são fortemente influenciados pelo comportamento estatal dominante de só efetuar o pagamento dos débitos até que o último recurso judicial seja interposto, por força de alguns ultrapassados entendimentos governamentais e institucionais – muitas vezes justificados, de forma auto-enganosa, como esperta estratégia política. Para isto, diuturnamente, são invocadas as pedras de toque que obstaculizam o caminho já tortuoso do cidadão.
Verifica-se, também, a falta de organização dos recursos para quitar as dívidas com demandas judiciais, bem como o protelamento de débitos para o governo seguinte. Porém, todos nós, mais cedo ou mais tarde, contribuintes, pagaremos a conta de um modelo de gestão ultrapassado, descompromissado e desconectado de suas maiores responsabilidades constitucionais.
Não podemos olvidar, ainda, que algumas dezenas de teses pacificadas pelo Supremo Tribunal Federal também já poderiam ser cumpridas administrativamente, o que evitaria gastos com a contratação de mais advogados públicos, mais juízes, mais servidores, mais defensores públicos, enfim, dispensaria mais recursos humanos e logísticos.
A mudança também precisa ocorrer em outros níveis. Os administradores precisam, finalmente, pautar as políticas públicas ligadas à administração dos gastos com demandas judiciais em dados estatísticos, sem deixar de ouvir o desejo social que aos poucos se revela, pois só assim teremos uma Administração Pública verdadeiramente democrática. Trilhando este caminho talvez consigamos alcançar outro patamar civilizatório e uma real mudança de paradigma aconteça, sendo abandonado de vez o modelo dominante apegado à burocracia paralisante.
Urge, assim, a necessidade de que o Estado estabeleça e identifique quais as situações em que possa dirimir seus conflitos sem necessariamente passar pelo caminho já congestionado e hiperprocessualizado do Poder Judiciário. Isso pode ser feito, segundo a Lei de Mediação, com a criação de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública, estabelecendo o modo de composição e funcionamento por regulamento de cada ente federado.
Esta mudança de comportamento e reforma do sistema judicial é uma tendência há muito tempo apontada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, na obra “Acesso à Justiça”. Segundo os autores, estas alterações no aparelho estatal estão inseridas na “terceira onda”, um enfoque que preconiza o envolvimento do Estado no acesso à justiça, não só apenas utilizando o caminho do processo judicial, mas focando também em políticas públicas que incentivem os meios alternativos de resolução de conflito[6].
O caminho exigirá perseverança e o modelo proposto deverá ser observado e acompanhado de forma responsável, colhendo-se os imprescindíveis dados estatísticos, para que se possa aperfeiçoar os instrumentos em matéria de resolução alternativa de conflitos. Só assim será possível termos uma autocomposição que favoreça a aproximação das partes e que construa uma Administração Pública democrática.
Para que esses objetivos sejam atingidos será necessário o tempo, a crítica e autocrítica de um sistema que deve estar em permanente reparo e evolução. Será preciso fazer a travessia de uma cultura judicialista, judicializada e hiperprocessualizada para uma cultura dialógica, pois é um caminho que aproxima o cidadão do Estado. Quem sabe assim possamos recuperar a esperança e a confiança perdidas, abandonar o pessimismo e usar a criatividade para humanizar não só o sistema de justiça, mas também os espaços da Administração Pública.
Para isso, a vontade de mudar deverá ser maior do que o medo da Lei de Improbidade e do Ministério Público. Obviamente, o administrador tem deveres e isso implica riscos, mas devemos focar nos resultados e com bons instrumentos isso poderá tornar-se possível. A Mediação e os demais meios de solução alternativa do conflito apontam para novos caminhos e devem ser vistos como instrumentos de aprimoramento da eficiência administrativa, princípio insculpido na Constituição Federal de 1988. Sem dúvida, os meios de resolução alternativa de conflitos contribuem para a construção de uma Administração Pública democrática e se apresentam como um desafio político posto à cultura jurídica brasileira: a de fortalecer a cidadania.
Notas e Referências:
[1] Antes disso algumas leis indicavam a possibilidade de resolução de conflito sem definir o seu procedimento.
[2] Expressão cunhada por Celso Antonio Bandeira de Mello, para falar dos princípios mais importantes do Direito administrativo, dos quais decorrem todos os outros.
[3] CRISTÓVAM, José Sérgio da Silva. Administração pública democrática e supremacia do interesse público: novo regime jurídico-administrativo e seus princípios constitucionais estruturantes. Editora Juruá. 2015. p. 325-326.
[4] Para saber mais: http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/politica-nacional-de-priorizacao-do-1-grau-de-jurisdicao/dados-estatisticos-priorizacao. Acesso em 12 dez. 2015.
[5] De acordo com os dados apresentados pelo site: http://www.conjur.com.br/2015-set-15/brasil-atinge-marca-100-milhoes-processos-tramitacao. Acesso em 12 dez. 2015.
[6] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfllet. Porto Alegre: Fabris, 1988. p. 31-74.
Por Juliana Ribeiro Goulart, possui graduação em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC-RS. Tem experiência na área da advocacia, com ênfase em Direito Processual, área em que é especialista pelo CESUSC. Atualmente ocupa o cargo de Assistente Jurídica da Procuradoria Geral do Estado de Santa Catarina e é pesquisadora na área da Mediação de conflitos. E Paulo Roney Fagundez Ávila, Pós-doutor em direitos especiais pelas Universidades Lusíada de Lisboa e do Porto, Portugal. Doutor e Mestre em Direito pelo PPGD/UFSC. Especialista em educação (convênio MEC/OEA). Formação em Psicanálise pela Escola Brasileira de Psicanálise. Pesquisador da FCT (Portugal) e da IUCN. Procurador do Estado de Santa Catarina.
Fonte: Empório do Direito – 20/12/2015
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20 de dezembro de 2015 |

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