A judicialização da arbitragem

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Aos 20 anos da lei 9.307/96, o panorama de judicialização da arbitragem é cada vez mais real. A expectativa é que seja uma fase de adaptação, de caráter transitório, rumo à consolidação do instituto dentro do ordenamento jurídico brasileiro.
É preciso observar, contudo, que as disputas judiciais a respeito de questões arbitrais nem sempre são recebidas por magistrados e advogados efetivamente preparados para os desafios provenientes da matéria.
Se por parte da magistratura está superada a pecha do corporativismo que resultaria da suposta ameaça de competição entre a arbitragem e o Judiciário; falta, de modo geral, mais conhecimento técnico e suporte competente aos advogados subscritores das teses. Estes últimos, que deveriam ajudar a esclarecer os dissensos, não raro levam teorias absurdas ao processo, o que acaba dando vazão a precedentes danosos a ambos: o instituto1 e as partes.
Tome-se como modelo determinado caso analisado no Superior Tribunal de Justiça, STJ, no qual, em sede de debate, ventilou-se que a cláusula arbitral escalonada, para ser assim definida, dependeria da escolha da preposição utilizada na redação, em detrimento do intensão dos contratantes. Desta forma, cogitou-se que se a cláusula dispusesse que haveria “arbitragem e mediação”, seria escalonada, mas se dispusesse da realização de “arbitragem ou mediação”, reputar-se-ia inexistente por força da facultatividade2.
Percebe-se, assim, que o que ocorreu (e poderia voltar a ocorrer), seria a alegação no âmbito do Judiciário de que aquilo que deveria ser uma cláusula compromissória vazia, na verdade, seria imperfeita ao ponto de ser inexistente ou patológica. Ou seja, contendas puramente semânticas (como esta) poderiam dar margem a questionamentos com potencial de comprometer a credibilidade do instituto arbitral.
Tais situações originar-se-iam a despeito de o artigo 8º da lei 9.307/963, parágrafo único, estatuir ao árbitro que diga de ofício ou por provocação das partes da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.
Nada obstante o acima prescrito, a submissão de controvérsias sobre aplicabilidade da arbitragem ao Judiciário está prevista na própria lei 9.307/96, em seu artigo 7º e parágrafos, justamente para os episódios de resistência quanto a instituição do procedimento, por intermédio do suprimento judicial da vontade, ocasião em que serão citados os contratantes para a lavratura do compromisso.
A sentença proveniente da ação de suprimento da vontade valerá como compromisso arbitral e poderá ser prolatada na própria audiência, a ser designada para a prova da cláusula compromissória e tentativa de conciliação das partes, ou no prazo dos dez dias subsequentes.
O problema é que a conjuntura do ajuizamento deste tipo de ação é capaz de sustentar o reconhecimento judicial da falta de arbitralidade – patrimonialidade e disponibilidade – ou de facultatividade, por exemplo, a servir de fundamento para a declaração da ausência de disposição arbitral (válida).
Em referência ao recurso especial mencionado anteriormente, conjecturou-se que a mera previsão da oportunidade de arbitragem no contrato não constituiria cláusula compromissória no sentido da lei. Emergiu, na ocasião, o conceito de “facultatividade” como oposto ao de manifestação inequívoca, concluindo-se que a existência da facultatividade proibiria que a causa fosse subtraída à apreciação judicial.
Como efeito prático, se esta posição houvesse prevalecido, implicaria a substituição do juízo arbitral pelo togado e a invalidação da arbitragem por via transversa, desde que constatada, a critério do julgador, a alegada característica da facultatividade.
Ou seja, admite-se uma análise prévia judicializável da cláusula arbitral, capaz de suplantar o princípio da kompetenz-kompetenz4, no exercício da aparente ponderação sobre a existência formal da cláusula (interpretativa) em contraposição à mera ocorrência material (constatação físico-redacional).
Com isso, mesmo que a cláusula compromissória esteja escrita no corpo do contrato, o magistrado estaria apto a julgá-la inexistente em decorrência do seu exercício hermenêutico subjetivo.
Oportunamente, a conclusão do julgamento no STJ foi taxativa na reafirmação do instituto arbitral, realçando que é preciso honrar o compromisso livremente assumido na subscrição contratual que prevê a realização da arbitragem5.
Sublinhou-se, ali, que no mesmo pacto podem coexistir na mais perfeita harmonia previsão de solução de disputas em ambas as sedes, judicial e arbitral, desde que se defina com clareza em que condições se recorrerá a cada uma. A simples menção da via forense não desqualifica a arbitragem prevista no acordo porque não tem precedência e nem sugere ausência de vontade inequívoca de recorrer à solução extrajudicial.
É de extrema deselegância, para dizer o mínimo, que o Judiciário seja explorado como o refúgio onde a parte recalcitrante busca guarida para furtar-se ao compromisso arbitral voluntariamente adotado.
Para tentar mitigar essas desavenças jurídicas, seria recomendado o emprego de anti-suit injunctions, medidas preventivas que têm o condão de obstar o manejo da ação judicial ou arbitral até que se aprecie em um juízo preliminar argumentos como a arbitralidade da matéria (ou a facultatividade, se recepcionada a ideia) e a existência/validade da cláusula compromissória.
A injunção, pois, serviria aos propósitos de sancionar as manobras das partes e coibir jurisdições conflitantes, sempre observado o primado da kompetenz-kompetenz.6
Infelizmente, a ferramenta ainda é estranha a muitos advogados como resultado do insulamento da arbitragem, pelos profissionais atuantes, em círculos fechados, e da preocupação dominante com os aspectos extrajudiciais da técnica em prejuízo das perspectivas de judicialização.
O quadro apresentado indica a necessidade urgente de especialização e qualificação dos advogados no trato árbitro-judicial e, igualmente, na etapa de elaboração contratual com inclusão de cláusulas compromissórias bem formuladas, é fundamental ao esforço de evitar discussões jurídicas, judicializadas ou não, extenuantes e perigosas sob a ótica da segurança jurídica.
Avançando o exame da arbitragem na seara judicial, o tema de homologação parcial das sentenças arbitrais forâneas tem causado justificado desconforto – também sob o prisma da segurança jurídica –, porquanto as decisões internacionais que precisarem ser homologadas no Brasil estarão à mercê de sofrer, de ofício, “reformatio in pejus” pelo STJ.
Em tese, a decisão de mérito que decorre do processo arbitral, no qual as regras foram acordadas de comum acordo pelas partes, chega a uma conclusão de direito materialmente imutável. Não obstante, é possível, na esfera da homologação, que o tribunal entenda ser necessário alterar aquele conteúdo decisório para adequá-lo à legislação nacional – que não foi eleita para utilização na disputa – sem qualquer esperança de revisão posterior desta suposta adequação.
Valeria a pena depender de uma homologação nestes termos?
Até a Emenda Constitucional 45/04, o STF não permitia o endosso fracionário de sentença estrangeira (STF – SEC 4.738/EUA, Relator Ministro Celso de Mello, julgada em 24.11.1994). Todavia, com a transferência da competência para o STJ, inovou-se com o artigo 4º, §2º da Resolução 09/2005 (STJ) que passou a prever expressamente a aprovação de uma ratificação parcial com vistas à preservação da ordem pública nacional e da soberania.
Aqueles que defendem a objetividade do processo explicam que preenchidos os requisitos legais (dentre os quais não-violação da soberania e ordem pública nacional), seria obrigatória a validação integral do decisum forasteiro porque inexistiria espaço para invasão do mérito em vista da contenciosidade de natureza limitada do exame. Ausentes os requisitos, proibir-se-ia a homologação. É o posicionamento adotado pelo Ministro Félix Fischer do STJ, conforme noticiado por ocasião de seu voto na SEC 9412/US, atualmente conclusa ao Ministro João Otávio de Noronha após pedido de vista.7
A corrente contrária, por sua vez, entende que para salvaguardar a soberania e a ordem pública nacional8 seria possível sancionar parcialmente sentença arbitral estrangeira, decotando-se a parcela incompatível do conteúdo de direito para endossá-lo com limites. É o que se verificou na SEC 2.410/EX, Relatora para acórdão a Ministra Nancy Andrighi do STJ, DJe 19.02.2014.9
A discussão da arbitragem em sede judicial tem se ampliado com a “descoberta” da admissão de tutela de urgência na homologação de sentenças estrangeiras (Resolução 09/2005-STJ) e com a previsão de homologação de decisões forasteiras concessivas de medidas de urgência e interlocutórias (Novo Código de Processo Civil, art. 880). Observe-se que as hipóteses não são equivalentes, visto que um veredito terminativo poderá ensejar a tutela de urgência.
Ao Poder Judiciário caberia, por fim, disciplinar pontualmente circunstâncias de incertezas do direito material. Exemplificativamente, o artigo 23 da lei de Arbitragem, no parágrafo primeiro, antevê a figura da sentença arbitral parcial. Eventuais dubiedades quanto ao alcance e significado na interpretação desta regra legal possivelmente serão dirimidas na Justiça.
Indaga-se da compatibilidade entre arbitragem e direito consumerista, trabalhista ou envolvendo a administração pública. Foram alimentadas polêmicas na época de votação da lei 13.129, de 26 de maio de 2015, a respeito da inclusão destes tópicos, mas à exceção de uma hipótese, a norma quedou-se silente ou foi vetada.
No direito do consumidor, embora se recomende a adoção de meios alternativos de solução de conflitos, falta providenciar mecanismos de operacionalidade para a arbitragem. Os desafios vão desde a indisponibilidade teórica e hipossuficiência ao fato de ser comum envolverem valores módicos (hoje, acertadamente discutido nos Juizados Especiais com amparo na lei 9.099/95)10.
No ramo trabalhista, a EC 45/04 incluiu a opção da arbitragem em casos de dissídio coletivo (art. 114, §2º, CF/88). O mesmo seguiu-se na lei 7.783/89, art. 3º, caput, sobre o direito de greve; e na lei 10.101/2000, art. 4º, inciso II, quanto a participação nos lucros ou resultados. Ficou o dilema no tocante aos dissídios individuais, por enquanto adstritos à própria justiça laboral por força da irrenunciabilidade11.
Frise-se que o PL 406/13 do Senado (que deu origem à lei 13.129) dispunha do cabimento da arbitragem nos contratos individuais de trabalho dos ocupantes de cargo/função de administrador ou diretor estatuário, desde que com anuência ou por iniciativa dele. A previsão foi vetada.
Finalmente, até a edição da lei 13.129/15, divergia-se sobre a aplicabilidade da técnica arbitral à administração pública direta e indireta face à alegada incompatibilidade principiológica. O STJ já havia manifestado que, naturalmente, não seria todo e qualquer direito público suscetível à análise na via arbitral, mas somente os disponíveis com essência contratual ou privada (AgRg no MS 11.308/DF. Relator Ministro Luiz Fux. 1ª Seção. 14.08.2006).
A arbitragem, certamente, não é universal – na acepção de não ser recomendável em diversificado número de ocasiões12. Além de restrita, exige grande carência de conhecimento técnico e envolve despesas consideráveis13.
Parece coerente concluir que a promessa para o futuro, portanto, é que não será a matéria – contratual, securitária, societária, trabalhista, consumerista, etc. – o critério ideal para a eleição do método arbitral. Este, a seu turno, será extensível a toda e qualquer relação de direito disponível/renunciável, desde que economicamente e formalmente viável.
Apesar de vintenária, do enfoque cronológico e legal, a arbitragem brasileira está saindo tardiamente da infância no âmbito prático e os próximos 20 anos prometem um crescimento e lapidação exponenciais em relação aos anteriores. Daí a importância de investir nesta que poderá ser a maior revolução cultural desde século no Direito.
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1 Souza, Giselle. Intervenção dos tribunais na arbitragem pode afastar investidores, diz canadense. Consul-tado em 14.12.2015.
2 REsp nº 1.331.100/BA, Relator para acórdão Min. Raul Araújo Filho. Julgado em 17.12.2015. Não houve disponibilização do voto ainda, consequentemente, são cabíveis recursos a partir da publicação. O resultado está tecnicamente em aberto até que se dê o trânsito em julgado.
3 Está pacificada, no mesmo art. 8º da Lei 9.307/96, que a nulidade do contrato não contamina a cláusula arbitral em face da natureza autônoma desta. A norma está em consonância com o artigo II (3) da Convenção de Nova York, da qual o Brasil é signatário, que institui que verificada a disposição arbitral, as disputas dela originadas deverão ser submetidas aos árbitros – cujas conclusões, estas sim, poderão ser objeto de análise pelo Judiciário, como poderá a própria sentença arbitral na eventualidade de nulidades (não quanto ao mérito). Uma coisa é a conclusão do árbitro quanto à competência – matéria formal. Outra coisa é o mérito da sentença arbitral.
4 Consubstanciado nas normas citadas na nota de rodapé anterior.
5 Disputa bilionária entre Odebrecht e Gradin deve ser resolvida pela arbitragem. Revista eletrônica migalhas. Consultada em 18.12.2015.
6 Em caso apreciado no STJ, o Ministro Marco Aurélio Bellize condicionou a propositura de anti-suit injunctions à observância do princípio da kompetenz kompetenz. Na prática, a medida serviu ao seu propósito de obstar a discussão judicial da causa até que o juízo arbitral se manifestasse. “A simples constatação de previsão de convenção de arbitragem – objeto de discussão no recurso especial -, enseja o reconhecimento da competência do Juízo arbitral, que, com precedência ao Poder Judiciário, deve decidir, nos termos do parágrafo único da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307⁄96), de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória”. (AgRg em AREsp. nº 371.993, Relator Min. Marco Aurélio Bellize, Terceira Turma. D.J 06/11/2014).
7 O Relator da SEC, Ministro Fischer, invocou no bojo de suas razões de decidir um precedente do STF na SEC 4730-2/US, Relator o Ministro Celso de Mello, julgamento em 24.11.1994.
8 Para os objetivistas, a eventual ofensa à soberania e à ordem pública nacional seria quebra dos requisitos com força anulatória. O problema é quão extensa é a percepção do magistrado sobre o que consiste em violação de tais postulados.
9 O argumento mais forte dos subjetivistas é o art. 4º, §2º da Resolução nº 09/2005(STJ) que expressamente autoriza a homologação parcial.
10 Proíbe-se explicitamente a arbitragem compulsória, inválida a cláusula compromissória no contrato de adesão.
11 Há exceções, como o AIRR nº 1475/200-193-05-00,07, TST, Rel. Ministro Pedro Paulo Manus, DJ 17.10.2008, que admitiu arbitragem em matéria de direito individual do trabalho. Posteriormente, a Subseção I de Dissídios Individuais do TST consolidou entendimento pela incompatibilidade da arbitragem com tais direitos no SBDI-I, E-ED-RR-79500-61.2006.5.05.0028, Rel. Ministro João Batista Brito Pereira, DEJT 30.03.2010.
12 É fácil verificar a desproporcionalidade entre os expedientes judicial e arbitral. Suponha-se que em 2014 tenham sido abertos 1.000 processos arbitrais em todas as câmaras do Brasil – o que tende a ser uma suposição generosa no cenário real. Neste mesmo ano, no estado de São Paulo foram iniciadas 5.788.616 ações só na justiça estadual. Os dois juízos, portanto, não poderiam competir por demandas.
13 Para ilustrar a dispendiosidade da via arbitral, em visita ao site da Câmara de Conciliação, Mediação e Arbitragem CIESP/FIESP, o interessado deparar-se-á com tabela de custos segundo a qual os gastos administrativos para decidir uma causa com valor de R$ 30.000,00 seriam R$140.00,00, acrescido dos honorários do árbitro à razão de R$ 500,00 por hora, observado o mínimo de 20 horas. Quer dizer, no final das contas, gastar-se-ia R$ 150.000,00 para ver apreciada disputa de um terço desta monta. Só estes dados explicam a expectativa de que a quantidade de demandas transferidas da via judicial para a arbitral seja irrelevante para a primeira, cujo volume de processos é tão vultoso que se mantém indiferente à redução numérica que poderia ser proporcionada pela migração.
Por Eduarda Chacon, advogada do escritório Rosas Advogados.
Fonte: Migalhas, terça-feira, 22 de dezembro de 2015
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22 de dezembro de 2015 |

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