O que gera tantos litígios tributários?

0
Não raro ouvimos especialistas a apontar o excesso de processos em matéria tributária, aludindo a uma “cultura do litígio” que os incentivaria. Aproveita-se para sugerir soluções ao problema, a exemplo do uso de métodos alternativos à jurisdição, como a transação e a arbitragem. É o contexto em que surgem, também, os defensores de uma execução fiscal administrativa.
Como todo problema complexo, por certo há várias causas, mas neste texto se pretende examinar basicamente uma, que é central: o desrespeito aos precedentes. E, ao cabo, avaliar se da premissa decorrem os diagnósticos e as soluções propostas.
Quanto à principal causa para o excesso de processos judiciais, sabe-se que a maioria das questões que pendem no âmbito dos Tribunais têm a Fazenda Pública como parte. União, Estados, Distrito Federal, Municípios, e entes da administração indireta. Além das questões tributárias, que são muitas, há ainda as relativas a servidores públicos, e ao Direito Previdenciário.
Grande parte dessas questões seriam evitáveis. Bastaria que a Administração Pública em geral, e a Tributária em particular, respeitasse os precedentes. Mas nem as Delegacias Regionais de Julgamento da Receita Federal respeitam os precedentes do Carf — quando favoráveis ao contribuinte. Invocam o artigo 100 do CTN para alegar que as decisões dos órgãos de julgamento só integram a legislação tributária quando têm força vinculante, ignorando todas as demais. Decisões judiciais, só se proferidas em sede de recursos repetitivos, ou repercussão geral, e ainda assim às vezes se encontram caminhos para “interpretá-las” e assim reduzir seu alcance.
É bem provável que você, leitora, já tenha passado por isso: comparecer a uma repartição pública do Poder Executivo, na tentativa de ver uma pretensão acolhida, e escutar do servidor o seguinte: “A senhora até pode ter razão. Se for à Justiça, vai ganhar. Mas eu não posso fazer nada, porque a orientação é negar, e eu tenho que me preservar”.
Se preservar, no contexto do serviço público, parece ser, muitas vezes, negar a pretensão de um cidadão, ainda que de modo ilegal, desde que isso não favoreça terceiros, beneficiando apenas os interesses da própria Administração Pública.
São condutas assim que tornam o Judiciário repleto de processos que não precisariam existir, ocupando o tempo de magistrados, servidores e demais profissionais do Direito, que se poderiam estar dedicando a questões relevantes, ainda pendentes de solução definitiva. Incrementa-se, ainda, a possibilidade de se proferirem decisões discrepantes, ou de pessoas — as que vão e as que não vão ao Judiciário — receberem tratamentos diferentes para situações semelhantes, maltratando o princípio da igualdade e reclamando, no futuro, a reabertura de questões, e de novas polêmicas, com a que o Supremo Tribunal Federal está agora a deslindar, relativa à coisa julgada em questões tributárias diante de decisões definitivas contrárias à jurisprudência dominante. Jurisprudência defensiva e o bloqueio de recursos com o uso de critérios totalmente irrazoáveis, além do uso de algoritmos para apreciação de processos em massa, com a consequente perda da qualidade dessas apreciações, são sequelas também.
Quando o Supremo Tribunal Federal reconhece a ilegitimidade de uma exigência tributária, mas limita temporalmente os efeitos de sua decisão, “modulando-os” para o futuro, dá outra forte sinalização no sentido de que se ajuízem ações que poderiam ser evitadas. Isso porque o instituto da modulação, além de estar sendo usado, em matéria tributária, com frequência talvez superior à razoável, não raro ressalva o direito daqueles que já haviam movido ações até determinada data. Ou seja, na dúvida sobre se o STF declarará, ou não, uma exigência constitucional, o recado que se dá ao cidadão é: mova a sua ação individual, o quanto antes, pois se deixar para se movimentar depois da decisão, pode ser prejudicado por uma atribuição de efeitos ex nunc. O correto, nesse cenário, seria não só não se proceder à modulação, como também a Fazenda respeitar, de ofício, os efeitos da decisão, com a devolução do tributo indevidamente pago a todos os contribuintes, independentemente de pedido. A redução no número de feitos — totalmente desnecessários — seria enorme.
E, por último, a leitora pode estar pensando: e o que tudo isso tem a ver com transação, arbitragem, e execução administrativa, institutos citados no começo deste artigo? Nada. É incompreensível, por isso mesmo, que o suposto excesso de demandas seja usado como fundamento para defender tais institutos. A principal causa de insucesso das execuções fiscais é não se localizar o devedor, ou não se localizarem bens penhoráveis. Nesse caso, transação, arbitragem, e execução administrativa, seriam igualmente malsucedidas. Sem entrar nos méritos de tais institutos, o fato é que não dá para transacionar ou fazer arbitragem com quem não é encontrado, ou executar administrativamente quem não tem nada.
Na verdade, talvez as execuções judiciais não sejam tão ineficazes assim, pois é preciso colocar na estatística aquelas que sequer precisam ser movidas, porque os contribuintes, não querendo ser executados, pagam espontaneamente. Esse número é bem grande. Aliás, sobre a criação de uma execução fiscal administrativa, o entendimento do STF sobre a chamada “averbação pré-executória” dá fortes indicativos de que a Corte — se mantiver a coerência com seus precedentes — não consideraria constitucional a constrição patrimonial, diretamente pelo Fisco, sem a necessária interveniência do Judiciário. Mas, de uma forma ou de outra, o excesso de processos, e o alegado insucesso das execuções que tramitam junto ao Judiciário, não tem nada a ver com isso.
Por Hugo de Brito Machado Segundo, mestre e doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, professor do Centro Universitário Christus (graduação/mestrado), membro do Instituto Cearense de Estudos Tributários (Icet) e da World Complexity Science Academy (WCSA), advogado e visiting scholar da Wirtschaftsuniversität de Viena (Áustria).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 5 de outubro de 2022, 10h43
AdamNews – Divulgação exclusiva de notícias para clientes e parceiros!
Share Button
5 de outubro de 2022 |

Deixe uma resposta

Idealizado e desenvolvido por Adam Sistemas.
Pular para a barra de ferramentas

Usamos cookies para garantir uma melhor experiência em nosso site. Leia nossa Política de Privacidade.
Você aceita?

Configurações de Cookie

A seguir, você pode escolher quais tipos de cookies permitem neste site. Clique no botão "Salvar configurações de cookies" para aplicar sua escolha.

FuncionalNosso site usa cookies funcionais. Esses cookies são necessários para permitir que nosso site funcione.

AnalíticoNosso site usa cookies analíticos para permitir a análise de nosso site e a otimização para o propósito de a.o. a usabilidade.

Mídia SocialNosso site coloca cookies de mídia social para mostrar conteúdo de terceiros, como YouTube e Facebook. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

PublicidadeNosso site coloca cookies de publicidade para mostrar anúncios de terceiros com base em seus interesses. Esses cookies podem rastrear seus dados pessoais.

OutrosNosso site coloca cookies de terceiros de outros serviços de terceiros que não são analíticos, mídia social ou publicidade.