Por que a Justiça brasileira é lenta?

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A Justiça brasileira tarda, e tarda muito. Por aqui, entre o início de uma ação e a sentença podem se passar anos, ou mesmo décadas. Pior, o crime pode prescrever. Números do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) confirmam a percepção generalizada de que o nosso Judiciário anda a passos de tartaruga. De 2009 a 2016, o número de processos sem sentença, conhecido como de taxa de congestionamento, cresceu mais de 30% e chegou a 73% em 2016. Isso significa que apenas 27% de todos os processos que tramitaram nesse período foram solucionados, acumulando quase 80 milhões de casos pendentes. Temos o 30º Judiciário mais lento entre 133 países, segundo o Banco Mundial.
Essas cifras não indicam, no entanto, que os juízes brasileiros são ineficientes. O Índice de Produtividade dos Magistrados (IPM) em 2016 foi de 1.749 processos, o que significa a solução de mais de sete processos ao dia, em média, por juiz. São números muito melhores do que a média anual de 959 processos dos juízes italianos, 689 dos espanhóis e 397 dos portugueses, por exemplo, de acordo com dados de 2014.
Gargalos são muitos
Ao que poderia ser creditada, então, a lentidão da nossa Justiça? Uma das causas apontadas é justamente a falta de juízes. Conforme dados do CNJ de 2016, no Brasil há 8,2 magistrados para cada 100.000 habitantes, enquanto que a média nos países europeus é de 17,4. Na prática, os juízes brasileiros recebem o dobro de novos casos por ano em relação aos europeus, e esse volume só cresce, desenhando um cenário que começa a revelar o que está por trás dos problemas. Os Judiciários estrangeiros que funcionam melhor têm mais juízes e um número infinitamente menor de processos. Já a nossa taxa de congestionamento cresce naturalmente, seja pela grande quantidade de processos tramitando, seja pelo choque de decisões provisórias a que o sistema está sujeito. “Estamos em plena era da provisoriedade das decisões judiciais, com excesso de liminares, cautelares, habeas corpus e mandados de segurança contra decisões judiciais e recursos internos contra o que acabou de ser decidido. Quando eu era Ministro do STJ, cheguei a receber de 80 a 100 processos novos por dia!”, revela Sidnei Beneti, ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça, livre-docente em Direito Processual Civil e doutor em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP.
O excesso de demanda dentro do sistema é apontado como a causa fundamental da morosidade por Maurício Zanoide de Moraes, professor associado do Departamento de Direito Processual da USP. Para ele, tanto o Judiciário como a sociedade têm uma cultura do litígio, do conflito. Não procuramos a mediação e o acordo, por isso um número infinitamente grande de processos afoga o sistema. “Nenhum judiciário do mundo conseguiria dar conta da nossa demanda. Nossa estrutura jurídica foi desenhada em meados do século passado, para uma demanda muito menor. O excesso de ‘judicialização’, somado aos vários recursos e à frequente passagem para as instâncias superiores, que têm estrutura e capacidade menores e onde as decisões têm que ser colegiadas – feitas por um grupo de juízes -, acaba travando o sistema. E tudo desemboca nas instâncias superiores, que não dá conta.” José Luiz Gavião de Almeida, Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo e Professor da Faculdade de Direito da USP, concorda: “houve grande incentivo para o ingresso de ações no Judiciário, mesmo sabendo que ele não estaria aparelhado. O ideal seria o incentivo a outras formas de solução de conflitos, como a conciliação”.
Outro gargalo é a própria insegurança legislativa brasileira. Só a Constituição de 1988 já recebeu dezenas de emendas. A base da ordem jurídica são as leis e, se as leis são alteradas constantemente, os cidadãos acabam recorrendo demais ao Poder Judiciário em busca da segurança. Só que o Judiciário não tem condições de dar essa segurança, porque muitas vezes, quando acaba o julgamento de uma questão, as leis em que ele se baseou já foram substituídas por outras.
Outra peculiaridade brasileira é que 51% dos 95 milhões de processos em andamento no país são ações para recuperar valores devidos por pessoas e empresas aos estados, municípios ou à União. São os chamados processos de execução fiscal, um tipo de ação que não tramita no Judiciário dos EUA e da Europa. Esses processos são os principais responsáveis pela alta taxa de congestionamento do Judiciário, representando quase 40% do total de casos pendentes. Ou seja, governos, bancos, companhias telefônicas e INSS respondem por boa parte das ações judiciais em andamento no Brasil e congestionam a Justiça com demandas repetitivas, que poderiam ser solucionadas pelas Agências Reguladoras ou pela Administração Pública. “Acho que o grande número de impostos e seu valor excessivo leva à inadimplência. E o custo para cumprir todas as regras também leva à inadimplência”, opina José Luiz.
Mais um nó está na Justiça do Trabalho: são 11.000 ações trabalhistas por dia, em média. Só em 2016, foram mais de três milhões de novos processos. Elas representam 40% das ações que ingressam na Justiça brasileira todos os anos, totalizando 7,6 milhões de processos envolvendo rescisões, danos morais ou remunerações diversas do trabalho. O número é 70 vezes maior que o da Justiça americana, e quase 1.000 vezes o número de processos desse tipo existentes no Japão.
Some-se a tudo isso a elevada judicialização pela qual passa a sociedade brasileira e o excesso de recursos permitidos durante os processos e tem-se um panorama das travas que emperram a nossa Justiça. “Hoje, tudo pode vir a juízo e em massa ‘tsunâmica’ de processos individuais. O Brasil não possui mecanismos eficientes de aglutinação de processos semelhantes, como ocorre com a ‘class action’ anglo-americana”, diz Sidnei. “Quando relatei os processos relativos a perdas de cadernetas de poupança no STJ, além daquele um milhão de processos individuais, havia quase 3.000 ações coletivas sobre o mesmo assunto. No direito estrangeiro esses processos teriam sido aglutinados em um só, julgando-se uma só vez”.
O excesso de recursos é apontado como outro agravante. “Recursos como os embargos de declaração e os internos, que vão contra cada decisão dada no decorrer do processo, podem criar intermináveis questionamentos que não influem na questão central e só atrasam a decisão final”, afirma Sidnei. José Luiz dá um exemplo: “quando o juiz dá uma sentença, a parte vencida pode apelar. Antes do apelo, apresenta pedido ao Tribunal para ver seu recurso recebido no efeito suspensivo ou devolutivo. O juiz então julga monocraticamente e a parte apresenta embargos de declaração. Depois da decisão, a parte apresenta agravo interno e mais embargos de declaração. Finalmente aprecia-se a apelação, que pode ter seu julgamento estendido. Da decisão cabem mais embargos de declaração, e depois recurso especial e extraordinário, onde todo o rito é repetido. Isso sem falar que a cada despacho do juiz cabe agravo de instrumento. Há ainda pedido de efeito suspensivo que, se não atendido, desafia os embargos de declaração, e por aí vai”.
A estrutura e seus custos
O Judiciário está dividido por área de atuação: Justiça Comum (estadual e federal), Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar. Todas elas têm a primeira e a segunda instância. A primeira instância ou primeiro grau são as varas ou seções judiciárias onde atuam o juiz de Direito. Esse juiz é chamado de singular, e sua decisão é monocrática (apenas um magistrado). No segundo grau, os juízes, também chamados de desembargadores, trabalham nos tribunais (exceto os tribunais superiores). Os tribunais de Justiça (TJs) são responsáveis por revisar os casos já analisados pelos juízes de primeira instância. São 27 TJs, um em cada Estado, que julgam os recursos das decisões dos juízes de primeiro grau. Se o cidadão não concordou com a sentença do juiz de primeiro grau, ele pode recorrer para que o caso seja julgado no TJ. É quando o processo sobe para a segunda instância, pois houve recurso contra a decisão do juiz e, assim, o caso passa a ser examinado pelos desembargadores. A decisão então será colegiada. “O sistema processual e a própria organização judiciária são caóticos. São quatro instâncias jurisdicionais com degraus para o processo subir e permissão de quase tudo chegar ao Supremo Tribunal Federal, só transitando em julgado (quando não cabe mais recurso) após a manifestação deste. No resto do mundo, já se executa só com o julgamento de 1º grau”, explica Sidnei.
Apesar de termos um número baixo de juízes/habitante, quando consideramos o número total de servidores do Judiciário, o quadro se inverte. Temos 442.365 pessoas atuando no Judiciário, 18.011 delas magistrados. O Brasil tem mais de 200 servidores desse Poder para cada 100.000 habitantes, número muito acima da média dos países europeus já citados, que têm em torno de 50 servidores para cada 100.000. De acordo com a pesquisa publicada em 2016 “Abrindo a caixa-preta: três décadas de reformas do sistema judicial do Brasil”, parceria entre Luciano da Ros, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e Matthew Taylor, da Universidade Americana, de Washington, em 2014 o sistema consumiu 68,4 bilhões de reais em verbas públicas, o equivalente a 1,3% do nosso PIB no período. O gasto é de 0,32% do PIB na Alemanha, 0,28% em Portugal, 0,19% na Itália, 0,14% na Inglaterra, 0,12% na Espanha e 0,14% nos EUA. Na América do Sul, a Venezuela consome 0,34%, o Chile, 0,22%, a Colômbia, 0,21%, e a Argentina, 0,13%. As despesas totais em 2016 chegaram a R$ 84,8 bi, o que corresponde a 1,4% do PIB. A folha de pagamento consumiu 90% desse montante.
Por outro lado, no ano passado a Justiça conseguiu arrecadar R$ 39 bi para os cofres públicos, graças a ações como execuções fiscais junto a devedores da dívida ativa da União. A Justiça Federal foi a maior arrecadadora e o único segmento do Judiciário a recuperar aos cofres públicos um valor superior às suas despesas.
STF em ritmo lento
Em quase quatro anos da operação Lava Jato, o Juiz Sérgio Moro já aplicou mais de 1.700 anos de prisão para empresários e políticos corruptos. No mesmo período, o STF recebeu seis denúncias e nenhuma delas está pronta para julgamento. Dezenas de políticos enfrentam inquéritos no STF, onde o tempo médio de tramitação das ações penais só aumenta. Segundo levantamento da FGV-RJ, o prazo médio para o recebimento da denúncia, quando o suspeito se torna réu e passa a enfrentar o julgamento, é de 565 dias, o que dá chance de muitos se candidatarem à reeleição. Sidnei explica que um julgamento de 1º grau é naturalmente mais célere, já que o magistrado constrói a decisão sozinho, bem diferente do órgão colegiado. “Quando se trata de processos criminais, em que o tribunal superior funciona como se fosse juízo de primeiro grau, colhendo depoimentos e dirigindo a produção de provas, a produção do julgamento final é fatalmente mais demorada. Implica a coordenação de trabalhos entre vários integrantes da Corte e o debate para chegar a decisões que devem somar-se, depois de muita discussão, argumentação e convencimento.” Para Maurício, o excesso de demanda acaba por congestionar também o STF, que não tem condições de julgar tantos processos. “A demanda deles é desumana, mesmo com inúmeros assessores não há como dar conta.”
Uma das formas de desafogar o STF seria restringir o foro privilegiado, tirando de sua alçada centenas de processos criminais. No final de novembro, a maioria dos ministros do Supremo votou a favor de restringir o foro, mas o julgamento foi interrompido porque o ministro Dias Toffoli pediu mais tempo para analisar o processo. Entretanto, não se pode garantir que a Justiça comum julgará políticos corruptos com uma velocidade muito superior à do STF, dados todos os empecilhos já detalhados aqui.
É preciso desafogar a Justiça
Crescem no país as chamadas câmaras de arbitragem, espécie de tribunais privados que resolvem disputas e pendências entre empresas. Enquanto a Justiça permite uma enormidade de recursos que atrasam o andamento dos processos, na arbitragem não há essa possibilidade, e o caso acaba quando a decisão é proferida. Os árbitros são escolhidos pelas partes envolvidas e não precisam necessariamente ser da área do Direito. Além do sigilo, já que os casos não são públicos como na Justiça, a resolução costuma ser muito mais rápida e a sentença tem os mesmos efeitos da proferida pelo Poder Judiciário.
Podem ser resolvidas por meio de arbitragem, conciliação ou mediação disputas envolvendo divórcios, aluguéis, questões de vizinhança, desentendimentos familiares, relações de consumo, conflitos trabalhistas e as grandes demandas de empresas públicas e privadas e INSS, que têm milhares de ações idênticas. Observou-se em 2016 que, apesar de o novo código de processo civil tornar obrigatória a realização de uma audiência prévia de conciliação e mediação, a resolução de casos por esse meio ainda apresentava desempenho tímido: das 30,7 milhões de sentenças e decisões terminativas, apenas 11,9% foram homologatórias de acordo. A Justiça do Trabalho é a que mais conciliou, com índice de 39,7%. Sidnei pondera que o instrumento é valioso, mas seria ingenuidade supor que irá resolver o congestionamento do Judiciário. “Audiências de conciliação são sempre bem-vindas, mas não são remédios para todos os males.” Maurício insiste que a solução está em diminuir a entrada de processos no sistema, investindo nas audiências prévias de conciliação, composição, mediação e arbitragem. “Esses meios alternativos precisam ser oferecidos, e para isso tem que haver uma reeducação dos membros do Judiciário e da sociedade. Temos que entender que, em muitos casos, é melhor fazer uma conciliação ou acordo, ao invés de apelar para a Justiça.”
Por Alvaro Bodas, de Exame Hoje
Fonte: Exame – 27 dez 2017
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27 de dezembro de 2017 |

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