A previsão da lei 14.133/21 sobre a utilização dos meios alternativos de resolução das controvérsias: o que há de novidade em tudo isso?
0A ampliação, quantitativa e qualitativa, dos métodos possíveis de serem utilizados pela Administração Pública para solucionar os conflitos que a envolvem já não é novidade no Brasil. Desde 20151, de maneira expressa, a judicialização das contendas administrativas deixou de ser a “única porta”2 acessível e iniciou-se a estruturação de um verdadeiro sistema de solução de conflitos composto também por formas alternativas de resolução.
Segundo Gustavo Schimidt (2021, p. 69), “o sistema de solução de conflitos deixou de ser unidimensional”, sobretudo com a entrada em vigor da lei 13.015/15 (Código de Processo Civil). Neste momento, o Estado se torna o agente impulsionador da consensualidade3 e a Administração Pública, nos diversos entes federativos, recebe a incumbência para criação de câmaras de conciliação e mediação com atribuições relacionadas à resolução de conflitos através da busca de consenso em seu âmbito de atuação4.
Também em 2015, a Lei de Mediação (lei 13.140/15) dispôs sobre autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública e elencou dentre as competências das referidas câmaras, a prevenção e a resolução de conflitos que envolvessem equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares5. Desde então, já percebíamos a presença clara de suporte legislativo para embasar a utilização dos métodos alternativos de solução de conflitos no âmbito das contratações públicas.
Em atendimento à exigência constitucional, o princípio da legalidade administrativa deixa claro que o emprego da extra judicialidade decisória consensual, para além do acordo entre as partes (autonomia da vontade), pressupõe também prévia disposição legal quando envolve entes estatais. Nesse sentido, a lei 14.133/21, veio reforçar a necessária autorização legislativa ao elencar um capítulo inteiro (Capítulo XIII) com objetivo de regular o emprego dos meios alternativos da solução de controvérsias relacionadas às licitações e aos contratos administrativos.
Assim, o caput do art. 151 consagra expressamente a faculdade que a administração tem de utilizar-se dos instrumentos alternativos para resolução de controvérsias6. Veja que se trata de mais uma opção, inserida no contexto da discricionariedade administrativa. Cabe ao Estado contratante optar, sob critérios de conveniência e oportunidade, pela judicialização ou extra judicialização do conflito. Uma vez escolhida a via de tratamento extrajudicial, o dispositivo apresenta a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem como meios possíveis.
Interessante ressaltar que este não é um rol taxativo, portanto, outros métodos também podem ser utilizados, além dos citados no caput do art. 151. A este respeito, lembremo-nos do disposto no artigo 175 do Código de Processo Civil7, que tem aplicação subsidiaria diante de lacuna.
Vimos que a previsão trazida no Capítulo XIII da lei 14.133/21, não é totalmente inovadora. Algumas leis esparsas já trataram do assunto relativamente aos contratos administrativos: lei 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações); lei 9.478/97 (Lei do Petróleo); lei 10.233/01; lei 11.079/04 (Lei das Parcerias Público Privadas); a lei 11.196/05, que incluiu o art. 23-A na lei 8.987/95 (Lei de Concessões); e a lei 12.815/13 (Lei dos Portos), entre outras. O mérito da nova lei de licitações e contratos reside na sistematização específica do tema.
De fato, a lei 8.666/93, não tratava do assunto e não mencionava qualquer método extrajudicial de solução de conflitos em seu texto. Sob sua regência, a jurisprudência teve papel relevante, portanto.
O STJ manifestou-se pela possibilidade de utilização da arbitragem em contratos celebrados por empresas estatais8. Na mesma linha, o Tribunal de Contas da União destacou a inutilização da arbitragem em contratações de entes públicos9, tendo admitindo-a em contratos celebrados por empresas estatais10. Afirmava que: “o juízo arbitral e’ inadmissível em contratos administrativos, por falta de expressa autorização legal e por contrariedade a princípios básicos de direito público”.
Dentre os métodos elencados pela lei 14.133/21, a arbitragem foi, historicamente, a mais analisada pelas cortes jurisdicionais, sem dúvida, e teve sua constitucionalidade chancelada pelo Supremo Tribunal Federal no processo de homologação de sentença estrangeira – SE 5206, de dezembro de 200111. O que se fez necessário porque a Lei de Arbitragem, em sua redação originária, não previa sua aplicação quando envolvesse entes públicos. A autorização legal somente veio em 2015, com a lei 13.129, admitindo-a em conflitos relativos a direito patrimoniais disponíveis. O parágrafo único do artigo 151 do nova lei de licitações e contratos cuidou de manter previsão expressa nesse sentido.
Temos que há consenso doutrinário quanto a eficiência trazida pela utilização da arbitragem nas contratações públicas12. Da mesma forma, há entendimento pacífico quanto a natureza exemplificativa do rol de direitos disponíveis citados pela ei 14.133/2113. Assim, questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações são apenas algumas dentre tantas outras possíveis de serem solucionadas com a utilização de métodos alternativos.
Sobre arbitragem, Alexandre Aragão (2017, p. 32) destaca que o conceito de disponibilidade de direitos alcançaria todas as matérias contratualizáveis. Estariam incluídas também as controvérsias afetas ao descumprimento das obrigações contratuais sem imediata expressão econômica, mas que posteriormente, apresentem repercussões econômicas. Dada a dificuldade em especificar a abrangência, Ricardo Yamamoto (2028, p.162-163) sugere que a cláusula arbitral seja a mais detalhada possível em definir as principais hipóteses de controvérsias arbitráveis em cada caso.
Nesse sentido, interessante que a administração pública realize um criterioso exame de admissibilidade para utilização dos meios alternativos de solução de conflitos, especialmente para aferir, no caso concreto, a presença de direito patrimonial indisponível.
A arbitragem é método heterocompositivo de solução de litígios no qual a controvérsia e’ equacionada por um terceiro (árbitro), que deve ser imparcial e especialista na temática. Sua atuação deve ser sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade14 quando envolver entes da Administração Pública.
O artigo 152 possui previsão semelhante a que já constava na lei de arbitragem (artigo 2°, parágrafo 3°), e, ao se referir sobre a necessidade observância do princípio da publicidade, remonta discussão quanto à confidencialidade inerente aos métodos alternativos. Segundo Cristiane Iwakura (2021, p. 1351) “a confidencialidade é um elemento essencial para a fluidez nos meios de prevenção e resolução tidos como consensuais (mediação, conciliação e arbitragem).
De fato, a confidencialidade é uma característica de tais meios (vide previsão do artigo 30 na lei de mediação15), mas sua mitigação nos casos que envolvam a Administração Pública não macula sua utilização, apenas exige uma ponderação entre direitos (intimidade/privada X transparência e publicidade/interesse público). Nesse sentido, Humberto Dalla e Patrícia Nunes (2018, p.24). Sobre arbitragem, Ricardo Yamamoto (2018, p. 66).
Seguindo ainda na heterocomposição, o dispute boards (DB) é um comitê, formado por especialistas imparciais, que tem a atribuição de resolver disputas durante todo o desenvolvimento de um projeto16, normalmente de alta complexidade e de longa duração. Nas contratações públicas, sua utilização se encaixa bem em obras de engenharia de grande vulto, pois pressupõe que os membros do DB acompanhem sua execução do início ao fim, reduzindo os custos e aumentando o grau de resolutividade dos problemas contratuais17.
Pode ser instituído sob diversos modelos:
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Dispute review board (DRB), quando não impõe decisões, mas fornece apenas sugestões para a resolução do conflito; o
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Dispute adjudication board (DAB), com capacidade decisória e o
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Combined dispute board (CDB), que mescla as possibilidades dos modelos anteriores. Com a rápida evolução, já se admite a utilização do online dispute resolution (ODR)18. Para sua utilização virtual dos meios de solução de conflitos sugere atenção redobrada às disposições da Lei Geral de Proteção de Dados – LGDP19.