Arbitragem, Tribunal de Contas e Direito Marítimo e Portuário – I

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A presente série de artigos visa ao estudo dos desdobramentos da interferência do TC na utilização da arbitragem pela Administração Pública em matérias de Direito Marítimo Portuário. Com um recorte mais detido, os quatro artigos subsequentes demonstrarão (i) a relação entre arbitragem e Administração Pública; (ii) relação entre arbitragem e Direito Marítimo Portuário; (iii) relação entre arbitragem e o TC, e, por fim, (iv) a relação entre arbitragem, TC e Direito Marítimo Portuário.
Arbitragem e Administração Pública
A lei de Arbitragem, após reforma promovida pela lei. 13.129/15, pacificou entendimento já consolidado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores de ser possível a utilização da via arbitral pela administração pública, consoante art. 1º, §1º, dispondo “A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis“. Em outras palavras, a jurisdição arbitral pode ser utilizada pelo Estado desde que a controvérsia verse sobre direito transacionável1, disponível, ou, nos termos da lei, “direitos patrimoniais disponíveis”. Complementando a capacidade e legitimidade de a Administração Pública utilizar a via arbitral, CARMONA elucida que a autonomia contratual do Estado só pode ser negada se ele agir “como Poder Público (hipótese em que não haveria margem para disponibilidade do direito)“.2
Nessa senda, percebe-se que a celeuma sobre arbitragem envolvendo o Estado reside na discussão sobre o que é ou não é direito patrimonial disponível. A questão tem como cerne a discussão sobre a natureza do interesse público, se ele é considerado direito indisponível de forma absoluta. Antes de questionarmos o tema, devemos analisar o entendimento majoritário na jurisprudência, no sentido de dividir o interesse público em primário e secundário, para, por fim, consagrar o último como apto a ser transacionável.
O TJ/SP, ao versar sobre a arbitralidade dos direitos patrimoniais, entende pela divisão de dois interesses públicos, um disponível e outro indisponível, dizendo que “embora admissível a utilização de cláusula compromissória em contrato administrativo, seu alcance limita-se pelo interesse público primário” (Agravo de Instrumento 0539082-35.2010.8.26.0000, 5ª Câmara de Direito Público, Des. Rel. Nogueira Diefenthaler, j. em 18/04/2011).
Podemos destacar, outrossim, importante decisão do STJ que esclarece de forma detalhada os motivos pelos quais o interesse público secundário é passível de ser transacionado enquanto o primário não. Em síntese, diz o julgado que o Estado “quando visa a evadir-se de sua responsabilidade no afã de minimizar os seus prejuízos patrimoniais, persegue nítido interesse secundário, subjetivamente pertinente ao aparelho estatal em subtrair-se de despesas, engendrando locupletamento à custa do dano alheio” (STJ, AgRg no MS 11308 / DF, Primeira Seção, Min. Rel. Luiz Fux, j. em 28/06/2006). No arremate, o acórdão chega à conclusão de que “indisponível é o interesse público, e não o interesse da administração”.
Nesse sentido, o interesse público tido como indisponível pela jurisprudência do TJ/SP e do STJ é aquele que versa sobre interesse da coletividade, que se sobrepõe às particularidades e ao próprio interesse da administração pública. No que concerne ao interesse exclusivo da administração pública, considerado interesse secundário, há possibilidade de instauração de arbitragem desde que as partes assim convencionem, pois a disposição de direitos exclusivamente patrimoniais da Administração Pública não prejudica o interesse da coletividade3, salvo hipótese na qual o interesse público secundário colide com o primário. Dessa realidade, não obstante a aparente estabilização do que é ou não passível de ser arbitrável, origina-se a comumente confusão conceitual feita entre “disponibilidade ou indisponibilidade de direitos patrimoniais com disponibilidade ou indisponibilidade do interesse público“.4
Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que inexiste uma regra clara explicando o que é ou não é direito patrimonial indisponível. Em segundo lugar, melhor do que pensar na disponibilidade do direito patrimonial seria a realização de uma análise global do direito material em questão, de suas especificidades, das partes que podem ser afetadas (se se trata de direito transindividual, coletivo, difuso, interesse público, etc.) e, à luz de todas essas balizas, averiguar em qual procedimento o deslinde do caso seria mais eficiente.
Ante o exposto, a complexidade dos litígios permite-nos a conclusão de não haver óbice de o Estado utilizar a jurisdição arbitral mesmo diante de questão de interesse público. Se este for secundário, a jurisprudência já é pacífica em aceitar a arbitragem. Se for primário, apesar de a jurisprudência majoritária do TJ/SP e do STJ entenderem pela indisponibilidade, a análise da possibilidade ou não de utilização da jurisdição arbitral demanda por uma averiguação global do litígio, de suas especificidades, a fim de perceber qual o mecanismo de resolução mais adequado ao caso concreto. O sistema multiportas reforçado a cada dia pelo ordenamento jurídico brasileiro sugere pela apreciação molecular dos litígios, de modo que cada demanda pede determinado tipo de tratamento, não havendo necessidade de analisar a disponibilidade do direito, mas sim a eficiência da tutela escolhida para o justo desfecho do caso. Isso, aliás, já é realidade na Mediação brasileira, haja vista o art. 3º da lei de Mediação dizer ser possível a aplicação desse método autocompositivo para conflitos que versem sobre “direito indisponível que admitam transação”.
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1. “Todavia, nem todos os conflitos podem ser submetidos à arbitragem, que só pode ter por objeto direitos patrimoniais disponíveis”. GRINOVER, Ada Pellegrini. Ensaio sobre a processualidade: fundamentos para uma nova teoria geral do processo. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 63.
2. CARMONA, Carlos Alberto, Arbitragem e Processo: um comentário à lei 9.307/96. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2009, p. 45.
3. “Em se tratando de relação de direito público, em que o Estado atua preponderantemente como agente político, não haveria possibilidade de sujeição do Estado à arbitragem. Por outro lado, se o Estado estiver atuando na esfera privada, em relação de direito privado, o recurso à arbitragem seria possível”. MAGALHÃES, José Carlos de. Do Estado na Arbitragem Privada. Revista Brasileira de Arbitragem. nº 34. Ano IX (Abr-Maio-Jun 2012). São Paulo: Síntese, 2012, p. 225.
4. CARMONA, Carlos Alberto, Arbitragem e Processo: um comentário à lei 9.307/96. 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2009, p. 50.
Por João Paulo Hecker da Silva é sócio do escritório Lucon Advogados.
Fonte: Migalhas – terça-feira, 14 de fevereiro de 2017
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14 de fevereiro de 2017 |

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