Novo CPC pode contribuir para mudança na orientação do ensino do Direito

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A aprovação do Novo Código de Processo Civil pelo Senado Federal, no crepúsculo da sessão legislativa de 2014, foi certamente o principal assunto jurídico a movimentar esse início de 2015. Esta ConJur publicou, quase diariamente, manifestações de juristas que teceram críticas ao texto aprovado ou especulam sobre o futuro da nova codificação — que ainda precisa ser sancionada e promulgada pela Presidente da República para se tornar, formalmente, lei.
Minha intenção com a coluna deste sábado é realizar algum prognóstico com relação às possíveis alterações que o advento desta nova ordenança processual pode provocar em nossa sedimentada cultura de ensino do direito. Dito de outro modo, existem determinadas disposições do novo CPC que tendem a forçar os limites daquilo que tradicionalmente se ensina a respeito de alguns conceitos fundamentais para nossa cultura jurídica, tais quais, jurisdição, jurisprudência, fundamentação das decisões etc.
Essa análise terá como foco os aspectos que considero acertados e que me fazem ver com bons olhos a nova codificação que está por vir. Esse dado inicial não exclui, contudo, eventuais críticas pontuais que, como disse no início, estão sendo apontadas por diversos juristas.
De um modo geral, o aparecimento dessa nova legislação processual dá continuidade à reforma do judiciário que, em sede constitucional, foi levada a cabo em 2004. Muito antes disso já se afirmava que a chamada “crise do judiciário” apresenta/apresentava ao menos três facetas: a) institucional; b) funcional; e c) processual. As faces institucional e funcional foram, de algum modo, enquadradas pela Emenda Constitucional 45/2004. Seu sucesso, em verdade, ainda é questionável. A face processual, de outra banda, vinha sendo implementada à conta gotas, há muito tempo. Primeiramente, por meio de reformas parciais. Agora, intenta-se enfrentar o problema a partir de um reforma total (de fato, para muitos, o CPC/1973 já não era, exatamente, “o” CPC/1973, mas, apenas, uma frouxa colcha de retalhos, despida de “unidade principiológica”).
Com efeito, quando o navio começa a “fazer água”, melhor trocá-lo por outro do que continuar a fazer pequenos consertos em seu casco. Mas essa troca exige um ajuste básico de premissas. Como se sabe, mudar a lei não resolve problemas da realidade. Mas, evidentemente, mantê-la como está também não. Portanto, para que haja mesmo alguma alteração na rota, é preciso que haja, juntamente com a mudança legislativa, uma mudança de imaginário capaz de alterar alguns padrões culturais sedimentados. E, obviamente, essa mudança começa no banco das universidades. Não adianta absolutamente nada o esforço de se alterar um Código se, no momento seguinte, continuamos a retratá-lo para os nossos alunos do mesmo modo que o fazíamos com CPC/1973. E os acadêmicos precisam igualmente se esforçarem para encontrar novos níveis de leitura que possam ser aplicados à nova legislação.
Tenho, aqui, alguns pontos que me parecem importantes de serem destacados a título de uma compreensão global do novo CPC e que refletem, inexoravelmente, em outras disciplinas jurídicas.
O primeiro ponto diz respeito a uma alteração de coordenadas com relação ao conceito de jurisdição. No Direito brasileiro, tradicionalmente, prevalece uma cultura estatalista em torno da jurisdição. Nesse sentido, em sendo a jurisdição uma manifestação da soberania estatal em sua dimensão de imperium, só haveria jurisdição onde houvesse Estado (daí a regular referência em nossa processualística à figura do estado-juiz). O alto grau de judicialização que pode ser percebido em nossa sociedade bebe dessa fonte. Aprendemos, nos bancos da faculdade, que o monopólio da solução dos conflitos é do Poder Judiciário. E, em consequência, o desenvolvimento de culturas alternativas de solução de conflitos sempre foi relegado a um segundo plano. Aliás, na maioria dos currículos universitários atuais, disciplinas que abordem com profundidade as figuras da arbitragem e da mediação, continuam inexistentes. Quando muito, figuram como matérias ou atividades optativas.
O novo CPC, por seu turno, procura dar destaque a tais mecanismos, mencionando-os já em seu artigo 3º, parágrafos 1º e 3º. É verdade que, no artigo 16, o Código afirma que a “jurisdição civil” é exercida por “juízes e tribunais”. Mas, é preciso ler tal disposição a partir de um contexto mais amplo. Como lembra Francisco Borges Motta, se a jurisdição vinha sendo tradicionalmente tratada pela doutrina ora como um poder-dever, substitutivo das partes, de aplicação do direito objetivo ao caso concreto (na linha de Chiovenda), ora como a atividade de justa composição da lide (seguindo Carnelutti), é chegada a hora de pensá-la a partir de uma visão constitucional, que estabelece um dever de produção de decisões legítimas que devem ser confirmadas de dois modos: por um lado, deve ser produto de um procedimento constitucionalmente adequado, por meio do qual se garanta, aos interessados, participação; por outro, a decisão deve estar fundamentada numa interpretação dirigida à integridade (dupla dimensão da resposta correta).[1]
De outra banda, como corolário do que foi dito acima, existe uma necessidade maior de atenção, qualitativa, às decisões judiciais. Com efeito, o artigo 486, parágrafo 1º estabelece analiticamente os requisitos para que uma decisão possa ser considerada fundamentada. Trata-se de um elemento que deverá transformar o ensino do direito uma vez que, no contexto atual, não possuímos padrões normativos claros para estabelecer o que significa uma decisão fundamentada de modo a dar efetividade ao artigo 93, IX da Constituição de 1988.
Além disso, o artigo 10 consagra a dimensão dinâmica do contraditório — na linha do que já vinha decidindo o STJ com relação à proibição de decisão surpresa — dando maior dimensão de controle das decisões judiciais.
Por certo, tais dispositivos não podem levar à conclusão de que o novo CPC apequena o Poder Judiciário ou que, de igual forma, estaria retirando-lhe poderes constitucionais. Pelo contrário, o novo CPC nos livrará de alguns fósseis jurídicos (como é o caso do livre convencimento motivado, retirado do texto a partir de uma batalha de Lenio Streck), e, ao mesmo tempo, dará maior dimensão pública às decisões judiciais. Os poderes instrutórios do juiz, em grande medida, permanecem (v.g. 386, parágrafo único). O que se modifica é a dimensão democrática que reveste tais decisões: ao invés de um ato isolado do juiz, a decisão sobre tais matérias passa a ser fruto de um diálogo efetivo com as partes; fruto de efetiva oportunidade de participação no procedimento.
O código também trará uma regulamentação inédita sobre a jurisprudência e os tais “precedentes”. Independentemente das críticas que podem ser oferecidas a alguns pontos específicos dessa regulamentação, o fato é que tais disposições devem impulsionar as universidades e os professores das disciplinas de introdução ao estudo de direito ou de teoria do direito em dar maior atenção ao estudo das famílias ou culturas jurídicas e a tendência de aproximação entre os modelos do common law e do civil law.
Ao mesmo tempo, será preciso maior atenção com relação a uma preocupação da teoria jurídica de países do common law, na medida em que o código apresenta, na cabeça de seu artigo 924, a necessidade de manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente, em nova emenda que teve a ativa participação de Lenio Streck (para uma explicação pormenorizada, clique aqui).
Esses três pontos, em conjunto, parecem-me determinar, necessariamente, mudanças substanciais no modo como estudamos e ensinamos o Direito. Há outros aspectos relevantes nesse sentido. Porém, nos limites dessas reflexões, estou contente com estes. O que será feito de tais disposições, dependerá, diretamente, do agenciamento de novas estratégias de pesquisa e ensino. Envolverá uma maior engajamento, tanto dos docentes quanto dos discentes. E não podemos agir tal qual os professores e alunos daquele curso de ética uma vez sugerido, ironicamente, por Woody Allen: “O imperativo categórico e seis maneiras de fazê-lo funcionar a seu favor”.
[1] MOTTA, Francisco José Borges. Ronald Dworkin e a construção de uma teoria hermeneuticamente adequada da decisão jurídica democrática. Tese de doutoramento defendida na Unisinos-RS, 2014. Cf., também, STRECK, Lenio Luiz, Verdade e Consenso. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, passim.
Rafael Tomaz de Oliveira é advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp).
Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2015, 8h00
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25 de janeiro de 2015 |

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